Carta Aberta aos
membros do XI Governo Regional dos Açores e aos Ex. mos deputados e deputadas
da Assembleia Legislativa Regional dos Açores
Ex.
mos membros do XI Governo Regional dos Açores e ex. mos deputados da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma dos Açores:
Em
primeiro lugar, lamento profundamente que a minha condição física não me
permita dirigir-me a cada um de vós para que pudessem enfrentar “olhos nos
olhos” a indignação pela falta de determinação que revelam ao descurar matérias
verdadeiramente importantes para os açorianos e açorianas: a mísera
comparticipação a doentes e acompanhantes deslocados; os direitos de
assistência à família em doença prolongada e o ainda não existente centro de
radioterapia nos Açores.
Tal
como centenas de açorianos e açorianas eu tenho cancro, um carcinoma basal da
mama. Após a cirurgia, que será realizada no próximo dia 27 de outubro, poderei
ser mais uma a constar da lista de pessoas encaminhadas para o continente
português, devido à inexistência de um centro de radioterapia nos Açores, para
um tratamento difícil e cujas consequências debilitadoras a nível físico e
psicológico são conhecidas e reconhecidas por todos vós.
Recordo-vos
que a 15 de novembro de 2010, data em que foi assinado o contrato para a
conceção, construção e exploração do Centro de Radioterapia dos Açores, Carlos
César, na altura Presidente do Governo Regional dos Açores, afirmou que o
futuro Centro de Radioterapia dos Açores seria um “empreendimento, que marcará,
sem dúvida, uma evolução enorme na capacidade instalada nos Açores de oferta de
cuidados de saúde.” Relembro-vos que a 11 de Abril de 2013 o secretário
regional da Saúde dos Açores, Luís Cabral, reafirmou a construção do centro de
radioterapia na nossa região dizendo que “tudo está definido para que o projeto
possa arrancar dentro de um curto prazo de tempo”. Não obstante, todos os
impasses e demoras levaram a que só em janeiro de 2014 foi anunciada a
construção do Centro de Radioterapia dos Açores e esperemos que o mesmo, tal
como afirmado, esteja finalmente concluído em 2015.
Ao
contrário de vossas excelências, a maioria dos açorianos e açorianas não está
versada na arte do viajar cá e lá e não possui o vosso arcabouço cosmopolita.
A
maioria dos açorianos e açorianas, por terem estado acorrentados pelo elevado
custo das passagens aéreas, vê o continente português como algo desconhecido e
como uma realidade tremendamente diferente da nossa.
Caminhar
nesta luta contra o cancro tendo de estar num ambiente tão diferente do nosso é
mais um dos obstáculos para nós. E tal não se deve apenas a ter de enfrentar a
azáfama das grandes cidades, nem a sentirmo-nos sós num mundo que não é o nosso.
Existem também outros motivos sobre os quais provavelmente muitos de vós ainda
não tiveram tempo nem consciência para refletirem.
Hoje
consigo percecionar que o “cancro dos açorianos” é um subtipo que enfrenta
maiores obstáculos.
Pela
voz de uma simples cidadã que neste momento luta pela vida e enfrenta a dura
batalha contra o cancro espero que vossas excelências entendam a gravidade de
terem delongado as vossas promessas e iludido quem vive e trabalha nesta terra.
Assim,
passarei a relatar-vos um exemplo concreto, o da minha própria situação, e
espero que escutando o meu pensar e o meu sentir entendam o desalento de quem
espera e desespera por um centro de radioterapia nos Açores, por um apoio digno
aos doentes que ainda têm de ser deslocados e por uma adaptação legislativa que
permita aos que padecem terem o acompanhamento familiar que tanto necessitam.
Ter
de iniciar um tratamento tão complexo numa cidade que praticamente desconheço
fragiliza-me ainda mais. Poderei partir para semanas duras e terei de me
afastar do meu povo, da minha gente, da paz destas ilhas, do cheiro deste nosso
mar e de todas aquelas características que fazem desta nossa terra um
verdadeiro paraíso. É muito mais amargo ter de enfrentar o cancro partindo para
longe deste paraíso que me enche a alma e embala o espírito.
Mais
grave ainda, meus senhores e minhas senhoras, é a comparticipação diária que
vossas excelências estabeleceram para doentes oncológicos descolados para o
continente português.
A
comparticipação diária atribuída a cada paciente açoriano deslocado no
continente, para financiar o seu alojamento e alimentação, apresentando o
devido recibo de alojamento corresponde à mísera quantia de 25 euros e 46
cêntimos. Um ultraje!
Pagando
alojamento digam-me vossas excelências quanto dinheiro deve sobrar para que um
doente deslocado se alimente?
Por
vossa responsabilidade um utente com uma doença cancerígena tem de sobreviver
num meio estranho, pagando uma diária de alojamento, com 25,46 €. Ou seja, o
utente com cancro é por vós encaminhado para uma abstinência alimentar forçada.
Não
espero que vossas excelências possam entender o quão aflitiva é esta situação
porque se tivessem de passar pela mesma enfermidade o vosso rendimento mensal
permitir-vos-ia a sorte de não terem de pensar neste pormenor: O que é que come
um doente oncológico quando deslocado para uma terra diferente? Sobrará
dinheiro para uma refeição?
É
triste… mas vossas excelências dão-nos uma miserável esmola que nem chega para
uma alimentação mínima. Para além de doentes oncológicos desejam ver-nos
anémicos? Ou é vosso intento que a fome nos definhe para deixarmos de ser mais
um encargo no orçamento que gerem?
Ex.mos
senhores e senhoras o “cancro dos açorianos”, sobretudo o dos pobres e
remediados, encontra nas vossas falhas sérios obstáculos que fazem esta batalha
parecer um pesadelo.
Sabem
vossas excelências que um tratamento de radioterapia demora em média seis
semanas?
Sabem
vossas excelências que o acompanhante do paciente apenas tem direito a um
reembolso de 65% do vencimento nos primeiros quinze dias?
Sabem
vossas excelências que a omissão legislativa relativa a este acompanhamento
leva os pacientes com cancro ao desamparo financeiro?
Falando-vos
na primeira pessoa digo-vos que, quando me está a ser colocada a hipótese de
seis semanas de radioterapia, as minhas forças e a minha coragem são
literalmente “atropeladas” por saber que quem me poderá acompanhar perderá o
seu vencimento. Vencimento este tão necessário para manter o equilíbrio do meu
lar.
Mais
grave ainda, a omissão legislativa no acompanhamento a pacientes com doença
prolongada que faz com que as entidades patronais possam declinar pedidos de
licença sem vencimento para este acompanhamento e, por tal, pode causar numa
família martirizada pelo cancro um outro mal pesaroso: o flagelo do desemprego.
Infelizmente,
perdi o meu pai, o meu tio e padrinho e o meu irmão e a minha mãe é uma idosa
acamada. Assim, o único familiar que me poderá acompanhar será o pai da minha
filha. A Maria tem quatro anos e um grave défice de IGA, que lhe traz diversas
patologias associadas e que faz com que ela tenha um plano terapêutico diário
muito dispendioso. Sendo assim, como poderei eu dar-me ao luxo de ir
acompanhada numa deslocação ao continente para tratamento de radioterapia
sabendo que a falta de um vencimento colocará em risco a assistência na saúde
da minha própria filha?
Assim,
meus senhores e minhas senhoras, deixo-vos o testemunho da angústia de alguém
que, vivendo o “cancro dos açorianos”, sente o medo de ter de enfrentar seis
semanas de uma guerra dolorosa numa realidade distante, só, afastada das
amizades que a apoiam e longe daqueles que ama.
Sinto-me
traída pelas vossas promessas, atrasos e omissões!
Sei
que já não poderei usufruir de um centro de radioterapia nos Açores, nem de uma
mudança legislativa que me permitisse acompanhamento em caso de deslocação e
muito menos de conseguir uma comparticipação diária condigna, mas espero
sinceramente que as minhas palavras vos toquem a consciência para que, num
futuro breve, não façam mais açorianos e açorianas passarem por este tormento.
Que
a minha voz desperte a vossa consciência cívica e que abracem esta causa porque
nós precisamos e merecemos não ter de passar pela amargura do “cancro
açoriano”.
Fonte:
Correio dos Açores / autor: Paula Margarida Tavares
29
de Outubro de 2014.
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