A
vencedora do 1º Prémio Literário AICL AÇORIANIDADE (2013), EM HOMENAGEM A
JUDITE JORGE FOI Maria Saraiva de Menezes:
com o CONTO com o título Chapéu de Chuva Transparente (crónica de um
amor sem limites)
O
prémio foi divulgado no último dia de sessões do 20º colóquio da lusofonia que
teve lugar em Seia na Escola Superior de Turismo e Hotelaria do Instituto
Politécnico da Guarda, e será publicado no prazo de doze meses pela editora
Calendário de Letras em parceria com a AICL.
MARIA SARAIVA DE
MENEZES
MARIA
SARAIVA DE MENEZES (1971, Porto) é professora e escritora. Licenciada em
Filosofia, pela Universidade Católica Portuguesa, em 1998. Descendente de
famílias do Minho e da Madeira, viveu no Minho durante a infância e
adolescência e, entre 1987 e 1990, viveu em Macau, onde frequentou o primeiro
ano do curso de Direito, na Universidade da Ásia Oriental. Vive em Lisboa. É
casada e tem 3 filhos. É autora de livros para crianças, pedagogia, poesia,
ficção e etiqueta. Realiza a HORA DO CONTO COM A AUTORA em escolas e
bibliotecas, com as suas histórias infantojuvenis. Três dos seus contos
infantis foram encenados e representados em Portugal. Integrou a antologia de
contos «A MAGIA DAS CHAVES», Edições Vieira da Silva, Lisboa, julho 2013, com o
conto «A Auxiliar».
É autora dos
seguintes títulos:
• Carta ao
Pai, Gradiva, Lisboa, maio 2000.
• O Pequeno Livro da Etiqueta e Bom Senso, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª edição,
junho 2001, 9ª edição, abril 2013, Livros D’Hoje, LeYa / Brasil, 1ª edição,
novembro 2012.
• O Pequeno Livro do Homem Apaixonado, Publicações Dom Quixote, Lisboa, junho 2002.
• O Pequeno Livro da Mãe Galinha, Plátano Editora, Lisboa, julho 2004.
• Etiqueta para
Crianças, Um Manual para a Cidadania,
Plátano Editora, Lisboa, 1ª edição, junho 2006, 2ª edição, maio 2010.
• 30 Conselhos
para Educar o seu Filho, Plátano Editora, Lisboa, 1ª edição, novembro 2007,
2ª edição, abril 2008.
• Pegadas de
Vento, Poesia, Teto de Nuvens, Porto, maio 2008.
• Vasco das
Forças, o Bullying e a violência
escolar, Editora Coisas de Ler, Lisboa, maio 2009.
• O Menino
Natal e o Pai Jesus, Afinal, o que é o Natal? (infantil), Editora Coisas de Ler, Lisboa,
novembro 2009.
• O Gafanhoto
Garoto não pode brincar, (O stress infantil e a importância de brincar),
Editora Nova Delphi, Funchal, Madeira, setembro 2012 / Roma, Itália, novembro
2013, Nova Delphi.
• O Dia
em que o Mundo Desapareceu, (infantojuvenil), em parceria com o filho Vasco
Serôdio, Anim Edições, Porto, março 2013.
• Tomás, Mariana
e o lobo, Conto infantil sobre a pedofilia, e-book, Escrytos, Leya, Lisboa,
junho 2013.
• KAFKA e
a figura do Pai no contexto do Humanismo Ateu, (Ensaio filosófico) e-Book,
Escrytos, Leya, Lisboa, agosto 2013.
DISCURSO
DE ACEITAÇÃO DO PRÉMIO LITERÁRIO AÇORIANIDADE 2013
É
uma honra receber este PRÉMIO LITERÁRIO AICL AÇORIANIDADE 2013 com o meu CHAPÉU
DE CHUVA TRANSPARENTE, CRÓNICA DE UM AMOR SEM LIMITES. Segundo pesquisei, o
conceito de "Açorianidade literária" foi definido por Vitorino
Nemésio, na revista Insula, em 1932 e, desde então, foi amplamente divulgado em
contextos bem diferenciados, desde estudos de âmbito literário a intervenções
de ordem política. Este meu conto/narrativa nasce precisamente da arte de
captar as caraterísticas características intangíveis e indefiníveis da
Açorianidade e do sentimento de insularidade, expressos através de uma
mundividência peculiar, visíveis através do sentimento de angústia metafísica
ou de um «je ne sais quoi» existencialista, ou do tal sentimento do emparedado,
ante a solidão e a distância.
A
partir da minha ilha interior transporto-me para qualquer ilha física ou
imaginária. Enquanto autora, viajei pelas ilhas açorianas; Madeira; Reino
Unido, Japão e por ilhas da China. A insularidade cresceu em mim, literariamente,
mas sobretudo na alma, e sobrepôs-se às minhas vivências. Nesta narrativa, o
sentimento insular mescla-se com fragmentos biográficos da infância, recria-se
numa ficção biografada e cresce com as personagens. As personagens, no entanto,
quase que se descartam em detrimento das emoções, assumindo estas o controlo da
narrativa e tornando-se, elas próprias, personagens principais de uma história
sem fim.
Esta
crónica é uma viagem aos lugares da infância, reais e imaginários, sentidos e
inventados; uma viagem num só fôlego e sem regresso. Em CHAPÉU DE CHUVA
TRANSPARENTE, não há regresso do crescimento e da morte quando morre a mãe e a
alma gémea do narrador. A morte na ficção, por vezes, pode ser mais cruel do
que na própria vida, e por isso, estas mortes roubam toda e qualquer esperança
ao personagem narrador. E não há mais esperança senão a de continuar a
respirar, rodeando-se de amor. CRÓNICA DE UM AMOR SEM LIMITES é, pois, o
subtítulo, ancorando-se num chapéu de chuva transparente que atravessa toda a
história e simboliza uma proteção protecção insuficiente mas dinâmica;
afinal, o retrato da vida humana.
Aqui,
a expressão do sentimento de insularidade afirma-se numa tríade de emoções que
toma forma numa tríade de ilhas: a ilha vulcânica onde a criança é exilada; a
ilha interior que emerge do sentimento de abandono da criança face à ausência
da mãe; e por fim, a ilha-promessa ou ilha-utopia, que é o lugar onírico onde a
criança se reunirá com o seu alter-ego e que simboliza a visão salvífica do
inferno na terra. Porém, a ilha-utopia não chegará a encontrar o seu topos, o
seu lugar real. A vida e esta história encarregam-se de apagar esse sonho
quimérico. Resta o sentimento latente de insularidade, moldando personagens
dentro de personagens, votando-as ao abandono, à solidão, mas lançando-as numa
esperança que nasce aqui de um passado já vivido.
«
A casa da ilha era o desterro onde vivia a outra avó a avó da ilha. Antes da
avó do norte ou das camélias eu tinha sido despachada para a ilha uma espécie
de prisão provisória mas onde havia umas tias boas de mais para serem verdade.
Na verdade a Teté e a Dé eram demasiado boas apenas para aliviarem em mim o
sentimento de exílio e o sofrimento a ele adjacente. Na realidade não se
tratava de um exílio era mais como se fosse uma morte em vida o que equivale a
perder a mãe quando ainda se é demasiado criança para se compreender seja o que
for. Mãe é respirar é viver é ser. Eu a era a morte em vida da minha mãe.»
Quando
visitei os Açores há uns anos, senti-os de imediato como um local mágico que
tinha de escrever. Escrever os Açores é recuperar a alma, respirar e logo a
seguir perder o fôlego. É preciso escrever os Açores como todas as ilhas dentro
de nós. Por isso, a partir da minha ilha interior transporto-me para qualquer
ilha física ou imaginária. O escritor precisa de transformar o que vê e o que
sente em palavras, para finalmente poder respirar e encontrar paz.
«A
casa da ilha fica fechada entre as montanhas que a encerram como se fossem
quatro paredes e mais algumas por detrás das primeiras. Sinto um vulcão
respirar entre aquela massa montanhosa escura como se toda a solidão do mundo
coubesse ali dentro das nossas vidas. Olha-se à volta e não se vê mundo, não há
horizonte apenas prisão e uma grande falta de ar. A Dorinhas está outra vez com
ansiedade custa-lhe a respirar diz a Teté anda vamos rezar ao Menino Jesus. E
ali habita uma sucessão de gerações de mulheres sobreviventes de uma ilha sem
salvação. A única coisa possível é o amor entre elas mas os dias sucedem-se com
uma banalidade demolidora e o amanhã não é redentor para ninguém. Á volta da
casa o quintal à volta do quintal os campos de vinha à volta das vinhas as
montanhas e à volta das montanhas das montanhas o mar. O mar isola-nos
inexplicavelmente de uma maneira que só é possível sentindo o choro da alma. A
Dorinhas está outra vez com ansiedade custa-lhe a respirar diz a Teté e então a
avó da ilha sorri e coloca-me a mão no peito e murmura palavras estranhas com
odor a rapé. As palavras murmuradas entredentes pela avó da ilha parecem uma
lengalenga mágica e a partir desse dia a escuridão da montanha já não era tão
escura embora nunca deixasse de ser montanha. A avó da ilha também era uma ilha
dentro duma ilha.»
Nesta
narrativa quase tão mágica quanto as palavras sibilinas murmuradas por uma avó
mistério, as palavras são um berço que embala a criança que chora. No meio do
silêncio, só as palavras podem calar o uivo do choro jamais libertado, só as
palavras livres e independentes podem conferir alguma liberdade a tal condição
de isolamento e desolação. Por isso, as palavras são criadas ao sabor do medo e
da esperança; surgindo de ímpetos arrancados como que do fundo do peito. Por
essa razão, surgem nesta narrativa neologismos livres e uma sintaxe redentora,
assim como uma grafia rebelde e experimentalista. Perante a cadência das
emoções, que marcham ao longo de uma narrativa que se pretende livre, é
premente remover todos os obstáculos do caminho, tais como vírgulas, pontos,
parágrafos, travessões de diálogo e pontos de interrogação. O discurso emana
duma interrogação permanente e as palavras são a salvação da alma.
Para
mim, enquanto autora, a grafia rebelde e experimentalista passou aqui pela
experimentação da utilização do AO (acordo ortográfico de 1990) como paradoxal
e irónica forma de protesto. Aqui, o uso do AO serviu como forma de exorcizar
barreiras entrando num mundo novo, mas sem alicerces e descartável. Afinal,
todas as palavras são descartáveis depois de derramadas as lágrimas, depois de
atiradas as palavras contra as paredes do vulcão que sufocam a criança na ilha.
O
discurso fluido e sem pontuação, assim como as palavras destituídas de
consoantes mudas e de hífens, assumem uma fluidez para além das normas do latim
e do espartilho da etimologia; a semântica sobrepõe-se às regras gráficas,
ortográficas e de pontuação, dominando em força e reforçando o seu domínio
através de neologismos criados diretamente directamente através da força
emotiva que as expele.
Esta
é pois uma narrativa que transcende todas as normas, à semelhança do estado de
desvantagem – ou será de vantagem? – em que o sentimento de insularidade coloca
o sujeito. Esta narrativa transcende todas as normas, por isso o uso o AO e a
escrita livre saramaguiana tomam valor de recurso estilístico, expressando uma
escrita livre ou libertária, pois destituída de pontuação, de indicação de
diálogos e das raízes da etimologia clássica.
O
assumido caos ortográfico demonstra a inquietude das emoções/personagens
principais, esse caos que retira palavras do seu contexto etimológico e
cultural, rompendo ligações com as raízes gregas e latinas da língua, avançando
com a destruição e fragmentação da língua portuguesa, na sua variante europeia.
Perfila-se aqui um símbolo do desabar da matriz linguística, qual referência a
uma mãe perdida. A morte da mãe, fatal nesta narrativa, radica em todos os aspetos
aspectos do desabamento da infância, da vida, da família, da Língua, da
ortografia.
Comecei
a escrever CHAPÉU DE CHUVA TRANSPARENTE e não sabia que o texto viria ter
comigo sem pontuação nem que me faria experimentalista do AO – eu que me afirmo
contra o absurdo decepar de consoantes com sua indispensável função diacrítica.
Quando esta narrativa se me impôs para que eu a escrevesse, não sabia que viria
sem vírgulas, sem pontos, sem diálogos e sem consoantes mudas. É um lugar-comum
dizê-lo, mas fui escolhida como intermediária desse processo literário que
ultrapassa sempre o seu autor – e que normalmente tem sempre algo de importante
a dizer ao autor. Fui empurrada pela força catártica da criatividade literária,
mergulhando num limbo de memórias, ficções e emoções onde não existe espaço
para a pausa nem para a vírgula. Assim, os diálogos surgem dentro dos
pensamentos e os pensamentos surgem entrelaçados com as falas de episódios de
uma história que se enreda em tantas. Esta libertação de todas as amarras,
linguísticas, sintáticas sintácticas e ortográficas é a própria força do
processo criativo, porquanto rebenta com essas mesmas amarras, experimenta ser
um ser diferente, ignora os dogmas e pretende apenas… respirar por entre
linhas.
«Se
outros tantos autores sagrados ou apenas consagrados podem porque é que eu não
hei de poder? Se inventam palavras as torcem e distorcem refazem a sintaxe
recriam a vida e as emoções nas frases que dedilham porque hei de eu ser
alertada olhe que isto não se escreve assim vou dizer ao revisor para cortar
você não pode escrever piqueno nem inventar desgramado essa palavra não existe
e onde está a pontuação a senhora julga-se alguma sara maga? Ora não só posso
como escorraço qualquer revisor que se aproxime do meu texto. O texto é meu das
minhas entranhas do meu sopro do meu pulsar. Não é nenhum corpo para um revisor
autopsiar. Ou não me chame eu Ricardo e tenha um projeto a dois para inventar
um país. E antes que me venham impor um acordo ortográfico aqui está ele ainda
mais papista do que o papa para que provem do vosso veneno. Esta é uma viagem
às emoções humanas e cada paragem são episódios de uma vida que são tantas.
Quem não quiser embarcar é desde já convidado a sair.»
É
pois uma honra receber este prémio literário, em nome da literatura e da
lusofonia, porque valorizo uma lusofonia cuja maior riqueza são as múltiplas
diferenças e a unidade na diversidade. A riqueza da Língua portuguesa enquanto
versão europeia releva do caráter carácter histórico e etimológico que
nos liga às línguas clássicas, unindo as famílias de palavras e fazendo sentido
na sua fundamentação ontológica. Por outro lado, a riqueza do Português
enquanto versão brasileira releva do seu caráter carácter inovador,
demiurgo de palavras e expressões culturais únicas e por isso mesmo, regionais
e específicas. Não queiramos ler um Saramago escrito em Português do Brasil nem
um Jorge Amado aportuguesado. Não quero ler Pepetela com sotaque de Cascais nem
Mia Couto com ortografia proveniente de uma utópica pronúncia culta. A riqueza
da Lusofonia é a sua idiossincrasia, não uma lei que foi resolvida em conselho
de ministros e nasceu numa fábrica ortográfica. A Língua é um organismo vivo,
sujeito à evolução por via erudita e popular; não faz sentido descaraterizá-la descaracterizá-la
numa unidade das escritas lusófonas, destituindo-a de tudo o que tem de único e
diferente. É único e não-formatável o maravilhoso Português de Angola, o de
Moçambique, de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, de Goa, de Timor, de Macau e
do Brasil – assim como as 55 variantes do Inglês, nenhuma delas silenciada com
a unificação. A matriz da língua é a garantia de que essa diversidade poderá
remeter-se à unidade sem que incorra no abismo da descaraterização descaracterização
da Língua. Há que preservar a matriz.
É,
pois, uma honra receber este PRÉMIO LITERÁRIO AICL AÇORIANIDADE das mãos da
AICL, ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DOS COLÓQUIOS DA LUSOFONIA”, cujos princípios e
objetivos objectivos são «um movimento cultural e cívico que visa
mobilizar e representar a sociedade civil de todo o mundo, para pensar e
debater amplamente, de forma científica, a nossa fala comum: a Língua
Portuguesa.» E afirma no ponto 6. «Em defesa da Lusofonia, defendemos a nossa
identidade como pessoas e povos, e em prol da variada língua comum com todas as
suas variantes e idiossincrasias, impedindo que outras culturas e outros povos
nos dominem cultural, económica ou politicamente, como alguns, ostensiva e
claramente, defendem.»
Bem-haja
aos defensores da Língua portuguesa, da Lusofonia e de todas as suas variantes
e idiossincrasias, na preservação da matriz da Língua portuguesa, viva e
múltipla. Viva a literatura. Viva a Língua portuguesa. Obrigada.
Maria
Saraiva de Menezes, 18 de outubro Outubro de 2013
NOTA:
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.
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