Não
é muito fácil explicar a saudade que um ilhéu sente. Às vezes, quando tentamos
explicar, ganhamos um entusiasmo tal que ainda passamos por malucos. Os nossos
olhos brilham, a nossa voz sobe de tom, as frases parecem cada vez mais
cantadas e os movimentos dos braços ficam mais e mais extensos! É uma coisa
‘Nossa’, tão ‘Nossa’, que só quem por lá passa percebe.
Nós
crescemos a ver o horizonte, com milhas e milhas de mar pelo meio, salpicadas
de barcos e de golfinhos. Nós crescemos a cheirar a sal, de pés descalços por
cima das escamas das abróteas que a mãe está a amanhar. Crescemos a pescar
carapaus, a escaldar a língua com torresmos de sal, acabados de escorrer na
matança do porco e a pelar os dedos quando tentávamos roubar um bocado de massa
escaldada para o bolo de milho. Nós crescemos a ouvir a buzina da carrinha do
chicharro às sete da manhã. E que bem que aquele som sabia… Sabia a
batatas-doces e molho cru.
Nós
crescemos a molhar o bico na ‘Angelica’ e mais tarde a surripiar garrafas aos
pais, tios, avós… Cedo percebemos que a ‘Angelica’ dá a pior ressaca de sempre.
Nós crescemos a ouvir os nós das mãos dos tios e dos pais a bater nas mesas de
madeira, enquanto jogavam à sueca. E que homens de força eram aqueles!
Crescemos a ver as tias lavar as tripas dos porcos, a encher as linguiças, a
cortar os bofes e a fritar as iscas. Que delícia!
Crescemos
com cheiro a pinheiros dos ‘Mistérios’ e eucaliptos do mato. Crescemos a
chamar-nos de ‘Éh Hóme’, ‘É piqueno’, ‘Ó laparouso’, ‘Salsa parrilha’,
‘Estepor’, ‘Rapaz’, ‘filho desta’, ‘filho deste’, ‘neto daquela’, e por aí
fora. Crescemos a bailar a Chamarrita, a ouvir filarmónicas e foliões,
gaitadas, o chiar das bifanas das tascas, dos foguetes. Crescemos a ouvir falar
de Baleeiros e de Heróis. A ouvir falar de outras vidas e outros tempos que em
nada se parecem com aquilo que vivemos.
É
imenso o respeito que hoje temos pelos nossos ‘velhos’, pelo percurso que
tiveram, pelas vidas de trabalho desde crianças, pela miséria que passaram, mas
acima de tudo pela nostalgia e saudade com que falam de tudo isso. São os mais
belos contadores de Histórias! Nós crescemos das Hortênsias e das Faias, do
basalto e de maresias. A nossa Alma é livre como um melro, mas por mais longe
que estejamos ela fica sempre lá, naquele cantinho, à nossa espera. Nunca
partimos inteiramente. Nunca nos despedimos. Não importa a distância e o tempo,
qualquer coisa que nos faça lembrar ‘Casa’ faz-nos sentir aquele frio bom na
barriga. Faz-nos respirar fundo e sorrir. Nós somos sal, somos basalto, somos
xailes negros, somos serrados e vinhas, somos mau tempo no canal, somos
pescadores e lavradores, somos cabeços e montanhas, somos vinhas, somos gado,
somos Gente. Não é uma Saudade triste, é uma Saudade diferente. Não é muito
fácil explicar as Saudades que um Ilhéu sente, mas se calhar é qualquer coisa
como isto, que sentimos agora, no final do texto.
(Título
original: É uma saudade grande das coisas mais pequenas)
EDUARDO
BETTENCOURT
Cantor
e ator
Natural das Lajes do Pico,
residente em Lisboa
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