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sexta-feira, 12 de junho de 2020

TRAGÉDIA NA POVOAÇÃO VELHA RELATADA NA PRIMEIRA PESSOA PELO POVOACENSE ZECA AMARAL


Foi no dia 11  de Junho  do ano de 1960.


A tarde estava calma e como Sábado se tratava, tínhamos acabado o dia mais cedo do que usual. Espairecia lá  para os lados do meu quintal onde adormeci quando na terra morna  dei ao corpo algum descanso, contente por ter acabado mais uma semana de árduo trabalho. Não sei explicar o porquê, mas fazia isto muitas vezes. Deitar-me ali e sentir o morno da terra  e outros sons vindos da mãe natureza os quais mesmo sem os não saber explicar ou interpretar, sentia e ouvia aquele silêncio que não  sabia se vinha dentro de mim próprio ou fora de mim! Assim muitas vezes adormecia como se estivesse numa cama de penas de pato num  hotel de cinco estrelas!   

Não tenho a certeza quanto tempo estive assim naquele estado, pois que entre as treze e catorze horas, vindo não sei donde, ouviu-se tão horrível estrondo, que logo pensei ser alguém bombardeando a nossa Vila, pelo lado norte ou sul, já o saberia quando em grande correria saí de casa  e fui  para onde o instinto estava a levar-me. Em direcção  ao caminho da ribeira e sempre a correr, olhei o mar lá em baixo e não vi nenhum barco ou barcos de guerra e pensei: Bombardeamento não deve ser, mas notei que havia muito fumo e barulho de explosões para os lados da nossa Câmara.  Desci o dito caminho, atravessei as passadas  da dita  ribeira e voltei à esquerda pela Rua de Trás, sempre a correr. Perto da Canada do Sr. Pereira da Luz, encontrei, Manuel Machado, meu amigo e que vinha em sentido contrário e em direcção a sua casa que era mesmo ali à esquerda  na dita Canada. Perguntei-lhe do que se tratava, que estava acontecendo? E ele, sem parar, apenas me disse:  uma grande desgraça aconteceu ou está  acontecendo, já não me recordo. Ele foi para casa eu continuei  a caminhada. Atravessei a Canada e voltei à esquerda na Praça dos automóveis, como a gente chamava então. Aqui  dei travão à brida, mas os nervos começaram a apoderar-se de mim, quando vi uma multidão ali mesmo em frente ao moinho da "Chora" e aproximando-me tive consciência do que se tinha ali passado e continuava  ainda acontecendo. Havia muita confusão, muitos gritos  de aflição de mistura a explosões  que vinham dos lados da Rua da tia Inocência. Soube que haviam pessoas  soterradas, mas nunca imaginei que haviam mortos. Uma pessoa apenas  me chamou a atenção com seus gritos aflitivos: Salvem as minhas filhas que estão em casa e esta está em ruínas, pelo Santo amor de Deus ajudem minhas filhas, dizia esta mãe com voz tão dolorosa e aflitiva que ninguém podia ignorar, mesmo que  tivesse coração de carrasco. O tom de sua voz pareceu-me uma prece tão sincero e sentido dela saia!


O que vou a partir deste momento descrever não é fruto de imaginação,  mas sim a cena que mais profundamente me marcou daquele momento e se bem que já se passou mais de meio século após o desastre, ficou-me gravado no mais recôndito do meu ser. Sem bem saber o que estava ou ia fazer, não pensando nas consequências do perigo que me ia meter, atendi ao pedido da esposa do Sr. António do Cosmo e arranquei ao sítio onde a senhora nos dizia ter deixado as filhas. No quarto por cima  da garagem onde o pai das moças tinha o seu muito falado e comentado, CITROEN. Parte do Café Brasileiro (do Sr. José Leite, era assim mais conhecido) estava em ruínas ou quase, o armazém onde originou a tragédia e que era pertença de Francisco Soares Brandão, era ali mesmo ao lado, e subi ao andar onde morava a família Cosmo. Aqui notei que não estava só. O meu primo Gil Melão, sem lhe pedir nada, tinha-me acompanhado. A fachada sul do edifício tinha desaparecido e notei que na ribeira que também chamávamos de tia Inocência, haviam labaredas misturadas com a água e, se bem que pequenas, muitas explosões. Olhei à minha esquerda  e aqui é que disse: aguenta-te coração, pois notei que a Luísa e a Dulce, sua irmã, estavam abraçadas, mas quase suspensas. Um bocado de madeira  parecia suster a Luísa pela garganta. Quando me abracei a elas, tentando   poder tirá-las daquela posição, penso que ouvi respiração numa delas. A partir desse momento varre-se da memória todo o restante desta parte  da tragédia. Alguém as retirou de meus braços e se houver alguém que me dê uma achega, acrescentando mais detalhes, será muito bem vindo e por mim apreciado.


Antes de descrever o após da tragédia abro aqui um parêntesis. E que Deus me perdoe se ao pensar, podemos pecar. A Luísa era uma, ou a mais bonita, das moças de então da nossa Vila. Penso que faria pecar um Santo  sem ter de esforçar-se muito. Sempre que via a Luísa passar... despia-a com o olhar e imaginava seu corpo sensual em meus braços e é aqui que confesso o meu pecado: penso que o senti mesmo, quando não havia nela já vida, mas fi-lo com todo o respeito que requeria a situação. De contrário seria sacrilégio.


Toda aquela rua parecia ter sido atingida por forte bomba ou tremor de terra.  A seguir ao armazém havia a casa do Sr. Gil Jerónimo toda em ruínas. Dentro havia mais uma vítima. Tia Beatriz, a ceguinha, mas que toda a Povoação sabia que via com os olhos da alma, pois que corria toda a Vila sem nunca se perder, sempre chegando aos sítios destinados, falando com as pessoas de seu conhecimento, tio Xico Inocência, na altura trabalhava  a fazer qualquer serviço no Armazém ao lado e que pertencia ao Sr. Dâmaso. Precisando de qualquer peça de ferramenta e como morava ali a dois passos, seguia a caminho de casa na altura da explosão, tendo tido morte instantânea, pois foi muito o que por cima dele caiu. No outro lado da rua, a situação não era menos caótica. António Galhardo, meu primo em segundo grau, estava a ter dificuldade a retirar a pedra que encimava a porta principal do dito armazém e que tinha atingido a cabeça do Sr. Ângelo onde logo morreu. Também na altura tentava escapar ao perigo e foi atingido na cabeça quando saia da porta. O irmão Dâmaso ficou onde parava mais tempo. Em espécie de escritório e junto da "burra" (para esclarecimento: a Burra era o que a malta chamava o cofre, onde  era guardado todo o dinheiro do armazém, sendo todos  os salários  pagos em moeda sonante). Foi aqui que ele se protegeu ou se achou protegido, e o dito popular veio ao de cima: "Vaso ruim nunca se quebra" mas isto seria assunto para outra ocasião. Tento descrever uma tragédia e não as misérias de então, que diga-se com abono da verdade, foram também tragédias, mas doutras maneiras.


Naquele tempo não haviam casas funerárias na Vila, e os corpos das vítimas, depois de serem retirados dos escombros, e como suas casas também tinham sido destruídas, todos os velórios excepto um, tiveram lugar noutras casas de familiares ou de amigos.


Apenas o Sr. Ângelo foi para a sua moradia que distava alguns metros  do sítio do sinistro.


Os funerais tinham de ser no dia seguinte, no Domingo, mas mestre Eugénio sozinho nunca poderia preparar tantas urnas em tão curto espaço de tempo. Assim todos aqueles que mesmo não sendo carpinteiros, digo os Leites e outros que já não me recordo dos nomes, que eram marceneiros, todos vieram voluntariamente e sem serem remunerados para que o trabalho fosse acabado a tempo.


Domingo triste e sombrio onde toda a alma que acompanhava o cortejo fúnebre do qual nunca se tinha ouvido ou falado nos anais da Povoação a não ser o da grande cheia que causou 14 mortos se não estou em erro, mas penso que a maioria dos corpos nunca foram encontrados (assunto  para nova tragédia daquela Vila), na caminhada para o cemitério em Santa Bárbara chorava lágrimas de grande dor e pesar. Ali reunidos, éramos como uma verdadeira família cristão e a nossa Vila ficou enlutada por alguns dias, tanto que as festas do Corpo de Deus tiveram de ser canceladas, pois que seria qualificado de sacrilégio  se ao contrário tivesse acontecido.....(para continuar).


Zeca Amaral


2 comentários:

  1. Obrigado pelo testemunho e pela publicação! Não era nascido mas minha mãe sempre nos contava pequenos episódios desse dia... Morreram minhas primas Cosme...e todos os outros!Paz as suas Almas!Mas como escrevi ainda há pouco tempo...a Povoação precisa de um espaço onde possamos guardar esses testemunhos e outros mais.Morr as pessoas e com elas levam a história!

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  2. Meu amigo Zeca,nunca li uma narrativa tão fiel do que se passou naquele trágico,tinha eu 1 anos e tinha ido á Lomba do carro com uns amigos apanhar canas da India para caniços,quando senti o estrondo que tão bem relataste.Tive talvez sorte porque brincava muito naquela ribeira como todos nós jovens,mas já morava na Infante Sagres,mas morei naquela Rua chamada de Olivença.Gostei muito do teu relato,parabéns amigo,e continua com essa veia espontanea e real que fáz parte de ti. Abraço POvoacense duma figa.

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