“A minha geração
foi preparada para a guerra colonial e tinha como saída quase exclusivamente a
emigração”
Correio dos Açores - Quando e onde nasceu? Conte-nos como foi, de uma forma resumida, o seu crescimento.
Gualter
Furtado (Economista) - Nasci a 1 de Fevereiro de 1953 no Vale das Furnas; num
dos lugares mais paradisíacos deste globo, rodeado por muita natureza, muitos
animais, muita água, centenas de nascentes, muitas plantas e flores, inhames,
vimes, vários jardins, caldeiras, bolos do forno e lêvedos, serenatas, muitos
músicos, colegas descalços, contrastes sociais, muita luta, muita amizade. Joguei
no Vale Formoso, nunca faltei a uma caçada nos matos da Achada das Furnas e
tive o privilégio de ter tido bons professores da vida e na escola oficial pública.
Vivi o drama da emigração e acompanhei de perto a guerra colonial, protestei,
escrevi e jubilei com a mudança de paradigma que Abril proporcionou.
Que tradições/costumes
da nossa terra recorda do seu tempo de infância que hoje já não se celebrem da
mesma maneira ou de todo?
Os
Açores, do tempo que me criei, foram os Açores muito pobres, ostracizados pelo poder
central e neste contexto qualquer festa, por mais insignificante que fosse,
principalmente com os olhos e a vivência de hoje, era um luxo. Por exemplo, as
festas do Divino Espírito Santo e todo o cerimonial que envolviam hoje não são
mais possíveis. Refiro em concreto o desfile do gado e a distribuição das
pensões nos carros de bois enfeitados a rigor e a guinchar, um ruído que
ouvíamos a dezenas de metros de distância. Hoje esta realidade só é vista em
paradas etnográficas e misturadas com veículos motores. Quase tudo mudou.
Comparando com a
geração dos dias de hoje, na sua opinião que diferenças existem em relação à
geração em que nasceu?
A
minha geração foi a geração preparada para a guerra colonial e que tinha como saída
quase exclusivamente a emigração. Só iam estudar para o ensino superior no
continente português os filhos dos senhores ricos e que eram poucos, ou então
os bons alunos da Escola Comercial e Industrial e do Liceu que conseguiam uma
bolsa de estudo da Junta Geral, como foi o meu caso, e que também eram poucos.
Hoje, felizmente, também aqui quase tudo mudou e salvo raríssimas excepções só
não estuda quem não quer, ou tem vistas curtas. A minha geração julgo que se tornava
adulta mais cedo e estava formatada para ser autónoma também mais cedo. Esta era
a regra. A geração de hoje é a geração do computador, do telemóvel, da dependência,
do consumismo, das redes sociais, com muita informação, que se casa mais tarde
e fica mais tempo em casa dos pais, e com mais depressões. Esta é a regra de
hoje, mas como tudo na vida existem excepções.
Que evoluções e
alterações tem notado no mundo de trabalho desde que começou a trabalhar até
àquilo que é hoje a sua realidade profissional? Conte-nos um pouco do seu
percurso profissional.
Quando
terminei o segundo ano da Universidade (Instituto Superior de Economia - ISE)
fui convidado para monitor, num tempo de regresso de professores universitários
que estavam no exílio, o que significava que em algumas matérias encontravam-se
naturalmente com dificuldades de adaptação, o que exigiu de mim ter muitas
vezes de os substituir. Como estudante, participei nos Órgãos de Gestão da
Universidade, principalmente no Conselho Directivo em representação dos estudantes
e participei na implementação da estratégia de enviarmos muitos assistentes do Instituto
Superior de Economia da Universidade Técnica de Lisboa para doutorarem-se no
estrangeiro. Esta visão julgo que viria a revelar-se fundamental para o actual
Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) principalmente para concorrer
com a Universidade Católica e a Universidade Nova que entretanto tinham sido
criadas a partir de alguns Professores saídos do ISE. Leccionei também no
Instituto Universitário dos Açores e depois na Universidade dos Açores, tendo
mais recentemente desempenhado as funções de membro do Conselho Geral desta
Universidade, o que muito me honrou. Quando saí da Universidade fui trabalhar
para a Banca como colaborador e mais tarde responsável na Gestão. Também estive
no Governo dos Açores como responsável máximo da área das Finanças e Planeamento,
bem como da Administração Pública, tendo saído a meu pedido do Governo. Uma
característica comum a todos os lugares em que passei foi a restrição de ter de
lidar com poucos recursos, crises e muitas dificuldades. Mas tenho o gosto e a
honra de ter procurado dar sempre conta do recado e sempre ajudado pelos meus
colegas de trabalho. Do Governo dos Açores entre outras, recordo as
dificuldades com origem na quebra de receitas provocadas abruptamente pelos
americanos, com o fim do pagamento pela utilização da Base das Lajes. Mas uma
coisa é certa, mesmo com estas restrições nunca autorizei um pagamento que não
tivesse cobertura orçamental, como nunca telefonei nem influenciei o Presidente
do Conselho de Administração do Banco Comercial dos Açores, de quem tinha a
tutela, para influenciar a sua política de crédito. Ele está aí vivo e pode confirmar.
Como também nunca telefonei ao Director de Finanças para condicionar o seu trabalho.
Ele, também graças a Deus, está entre nós a residir na costa norte. É importante
respeitarmos a autonomia dos serviços, e o conflito de interesses. As pessoas
devem ser avaliadas pelo seu comportamento e pelos resultados e sem
condicionalismos. Foi entusiasmante neste período ter participado no saneamento
e recuperação do subsistema bancário regional e trabalhado no processo de
implementação da nossa adesão à CEE, e que foi decisivo para os Açores na
substituição da quebra das receitas da Base das Lages. Finalmente, refiro e
como uma situação relevante na minha vida, foi a minha participação como representante
do Governo dos Açores no Grupo de Trabalho que teve a seu cargo a proposta da
primeira Lei de Finanças Regionais das Regiões Autónomas e que viria regular as
relações financeiras entre o Estado Português e as Regiões Autónomas dos Açores
e da Madeira.
Quando
comecei a trabalhar era a época da calculadora, hoje é a época do computador.
As viagens são uma
parte importante da sua vida? Que viagens mais gostou de fazer e que outras
sonha realizar?
A
viagem que fiz nos anos 90 aos Estados Unidos da América na companhia da minha mulher,
para ser homenageado pelos Amigos das Furnas dos Estados Unidos foi extraordinária
e diria mesmo comovente. Fui muito bem recebido pelos meus amigos furnenses e senti-me
em casa, próximo das minhas raízes e que foram transplantadas para outra terra.
As
viagens que faço às outras ilhas dos Açores e ao Uruguai com os meus amigos
caçadores também são sempre inesquecíveis. Tenho bons amigos em Santa Maria, na
Terceira, na Graciosa, em São Jorge, no Pico e nas Flores.
Que relação
estabelece diariamente e actualmente com a sua família? Sente que hoje tem mais
tempo para lhe disponibilizar?
Hoje
tenho mais um pouquinho de tempo, mas muito longe do que gostaria.
E os amigos que
lugar têm na sua vivência diária? Relaciona-se com os seus amigos com maior frequência
nos dias de hoje ou quando era mais jovem?
Quando
era mais jovem tinha mais amigos verdadeiros, hoje tenho muito mais conhecidos,
mas felizmente ainda tenho alguns amigos e que são um pilar fundamental no
dia-a-dia da minha vida.
Como é a sua
relação com a internet? Usa-a apenas para o trabalho ou como forma de lazer
também? Esta relação foi evoluindo ao longo dos tempos?
A
minha relação com a internet é de trabalho e de recurso para o conhecimento.
Hoje praticamente está quase tudo ao alcance do Google. Seria impossível fazer
o que faço hoje sem a internet.
De que forma se
relaciona com os seus filhos e netos? Como procura acompanhar o crescimento de
ambos com uma maior proximidade?
Relaciono-me
bem com os meus filhos, mas isto não significa que estamos sempre de acordo.
Quando eles eram pequenos a minha mulher foi fundamental no acompanhamento
deles, já que por exigências de trabalho eu era mais ausente do que ela. Hoje
gostaria de estar mais perto deles, mas o Francisco trabalha em Paris e a Ana trabalha
na grande Lisboa, o que restringe bastante o nosso contacto físico. Mas as
férias, os telemóveis, e os computadores de algum modo atenuam esta separação.
Quanto aos netos, ainda não tenho e este é um grande desgosto que mantenho, mas
respeito a opção deles. Para contextualizar, refiro que o meu melhor amigo foi
o meu avô Manuel Furtado Sachino.
Como caracteriza o
seu modo de vestir nos dias de hoje e na época em que estudava e que começou a
trabalhar, por exemplo?
Nunca
me preocupei muito com o meu modo de vestir, mas minha mãe sim. Quando nos
mudamos para a cidade, a minha mãe começou a vestir-me no estabelecimento do
vizinho Borges, ela fazia grandes poupanças para os filhos andarem bem
vestidos. Nos tempos de hoje sou cliente do Zézinho da Riviera, mas também da
Londrina e mesmo de outros estabelecimentos. A minha filosofia e conduta de
vida é comprar sempre no comércio dos Açores, é aqui que eu vivo e trabalho,
logo é aqui que devo gastar o meu dinheiro. Se todos tivéssemos este
comportamento julgo que viveríamos melhor. Durante o tempo que estudava cá nos
Açores não trabalhei com um emprego, mas gostava muito da agricultura e da
lavoura, e como fui criado com o meu avô, este era o meu mundo. Fui estudar
para o continente com cerca de 16 anos e a partir daí tornei-me economicamente
independente. Isto não quer dizer que nesta fase a minha mãe não me comprasse uma
ou outra Lacoste para me oferecer, me pagasse uma ou outra viagem para vir cá
nas férias grandes (1 vez por ano) e enviasse algumas vezes por portadores
pequenos caixotes, com chouriços, biscoitos e chá preto que ela fazia com as
próprias mãos... A minha mãe foi fundamental no meu início do percurso de vida
e de estudante.
Como caracteriza a
sua alimentação actualmente? Acha que a mesma tem mudado ao longo dos tempos
tendo em conta a modernização que a própria alimentação tem sofrido?
Gosto
muito da comida tradicional açoriana, ainda no Domingo passado o meu almoço
foram Molhos da Ilha de Santa Maria. Não dispenso um bom cozido nas caldeiras
das Furnas e comemos lá em casa muita gastronomia cinegética caçada por mim.
Estes pequenos exageros que vou cometendo e a contra gosto da minha mulher, compenso-os
com alguma fruta cultivada por mim e não só. Está claro com esta alimentação e
a carga genética que transporto e por a fruta não ser suficiente para anular os
defeitos de fabrico (ácido úrico) sou forçado de vez em quando a recorrer por
conselho médico ao Zyloric. Mas como de Outubro a finais de Fevereiro de cada
ano ando muito a pé, a coisa vai-se compondo. A alimentação de hoje é muito
diferente da que tínhamos quando era novo, para melhor e para pior. Por exemplo,
em casa de meu avô galinha guisada com ervilhas era só ao Domingo. E já cá em
baixo na cidade, na casa de minha mãe, de Segunda a Sexta-feira eram chicharros
fritos, assados, grelhados, abertos ao meio, etc., e ao Sábado e ao Domingo
comíamos fervedouro, ou um bife. E isto sempre acompanhado de excelentes doces,
como por exemplo o bolo de ananás. Realmente, a minha mãe era o que se pode considerar
uma grande mulher e cozinheira. E já agora esta história de se comer chicharros
de Segunda a Sexta-feira (o que é hoje considerado comida saudável), foi para
ajudar a pagar a prestação da casa que meus pais compraram em Ponta Delgada,
quando viemos estudar para a cidade e em complemento do dinheiro que meu pai
mandava na condição de emigrante nas Bermudas. Foi este o ambiente em que fui
criado e que moldou o meu carácter.
Patrícia
Carreiro
In
jornal Correio dos Açores, domingo, 10 de março de 2019.
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