fazer um site gratis no aqui

Número total de visualizações de páginas

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

TERÃO OS AÇORES SIDO TOCADOS PELOS FENÍCIOS?

Entender a nossa identidade - a de portugueses, sim - é mais complexo do que possa parecer à partida, em função de os traços que nos distinguem serem objecto de construções prévias com as quais não temos necessariamente de identificar-nos.

Assim é com a História, dos mitos fundacionais às ideias de grandeza nacional por vezes exacerbadas, estando os descobrimentos à cabeça. Reescrever a História, nesses casos, é ainda mais difícil do que o habitual e pode levar os investigadores a tomar caminhos invulgares. Assim é com Joaquim Fernandes, que, para questionar a primazia dos portugueses na navegação atlântica, recorreu à ficção, género apoucado num ambiente académico de que ele mesmo faz parte. A descrição de uma estátua equestre encontrada pelos portugueses quando chegaram ao mais remoto canto dos Açores, feita por Damião de Góis, é o ponto de partida para uma eventual reescrita da História, que encontra no romance "O Cavaleiro da Ilha do Corvo" (Círculo de Leitores, 2008) suporte pouco ortodoxo.

Escreveu a medievista norte-americana Nancy F. Partner que os factos históricos, mediante a acção do historiador, são transformados em "artefactos construídos cuja origem cognitiva partilham com qualquer invenção ou ficção". Tal premissa, evidentemente desmontável e pouco relevante se abstraída do contexto, pode funcionar, aqui, como legitimação de um romance que pretende dar força à possibilidade de fenícios terem tocado o meio do oceano antes das caravelas lusas: à descrição de Damião de Góis na Crónica do Príncipe D. João, ao longo dos cinco últimos séculos remetida para a gaveta das lendas de marinheiros, o historiador contrapõe um mapa existente na Biblioteca de Parma e datado de 1367, a par de outros elementos. Mais do que fazer valer uma tese, para o que teria de sujeitar-se à avaliação pelos pares, quer que o assunto deixe de ser varrido para debaixo dos tapetes da memória.

Resuma-se, enfim, a ideia que o historiador, docente na Universidade Fernando Pessoa, transmite através do citado livro ("criei um esqueleto ficcional e meti a carne dos factos lá dentro", diz): é sustentada a ideia de que navegadores fenícios (eventualmente por acaso, atendendo a que as incursões de navios mediterrânicos no Atlântico eram feitas em cabotagem) terão tocado os Açores muito antes dos descobridores portugueses; o ponto de partida é a já referida descrição (no capítulo IX da crónica, "em que ho author tratta algumas particularidades das Ilhas dos Açores, e de huma antigualha que se nellas achou") de Damião de Góis, que, enquanto pagem da Corte, terá testemunhado a chegada a Lisboa dos restos da estátua, mas associam-se-lhe outros vestígios, com destaque para o mapa que aqui reproduzimos e no qual, junto a uma ilustração que poderá ser entendida à longitude dos Açores, está escrita a frase em Latim "Estas são as estátuas diante das Antilhas", marcando o limite do oceano navegável; juntam-se nove moedas descobertas nos Açores e atribuídas ao século IV a.C., um amuleto descoberto na ilha de S. Miguel e, ainda, uma laje encontrada há 12 anos na Terceira, contendo petróglifos, alguns dos quais, segundo um especialista da universidade de Lovaina, Herbert Sauren, poderão ser produzidos por mão humana e serão eventualmente fenícios; junta-se a tudo isso trechos da historiografia árabe e aristotélicos.

Dando de barato a circunstância de a descoberta dos Açores ser normalmente mostrada por visões propagandísticas da grandeza pátria, é também certo que nunca foi um tema pacífico. Teses há, inclusivamente, que localizam no reinado de D. Afonso IV, isto é, no primeiro quartel do século XIV, apoiadas em fontes cartográficas nas quais o mapa de Pizzigani poderia ser inserido (Fernando Carreiro da Costa, no artigo que assina no Dicionário de História de Portugal dirigido por Joel Serrão, referencia historiadores que se apoiam em mapas genoveses da segunda metade de Trezentos, nas quais surgem esboços de ilhas que poderiam pertencer aos Açores; tais teses, que põem de parte a antiga cartografia em que abundavam as ilhas imaginárias, não questionam, porém, a primazia lusa, atribuindo a descoberta a marinheiros genoveses ao serviço da coroa portuguesa).

Joaquim Fernandes questiona, sobretudo, os porquês de, perante tais evidências, não haver "abertura para uma investigação séria". Em causa não está a essencial circunstância de os portugueses terem descompartimentado o Mundo, mas a necessidade de não ter medo de afirmar que outros houve antes de nós (a possibilidade de África ter sido contornada do Índico para o Atlântico, muito antes de Bartolomeu Dias, é outro caso pouco estimado). "A história é sempre construída pelos vencedores", frisa Joaquim Fernandes, lembrando que o imaginário atlântico é "um grande caldeirão em que o envolvimento português é apenas uma leitura".

Diz do livro que a base de sustentação não pode deixar as pessoas indiferentes, admite ter optado pelo romance para "facultar uma leitura mais agradável" e avança que vão ser transpostas para o ecrã as aventuras que inventou. José Mattoso, insigne medievista português, escreveu em tempos que "a História, tornada apenas narrativa, em nada difere da ficção". Mas isso é outro filme.


Povoação, Segunda-feira, 18 de dezembro de 2017.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Seguidores

As mais vistas dos últimos 7 dias

Arquivo do blogue



 
Powered by Blogspot