Aguarela
doutro tempo
Madrinha Clotilde foi até hoje a pessoa que conheci que
mais graça achei nos ditos espirituosos nas suas brincadeiras a que chamo de
partidas. Tinha dez anos de idade, quando vivi uns tempos com ela e meu padrinho,
seu esposo, foram eles que me levaram à pia baptismal. Era, para mim, minha
madrinha o sal da vida, o tempero com sua alegria, apesar dos tempos difíceis
tinha sempre um sorriso nos lábios e uma gargalhada espontânea, a que naquela
época diziam as pessoas: “Olha a festa dela ou dele”!
Minha madrinha era uma pessoa fascinante de um encanto
peculiar, penso não estar enganado ao afirmar que seria a criatura de Deus mais
popular das Lombas do Loução e Alcaide, hoje designadas por Freguesia de Nossa
Senhora dos Remédios.
A Clotilde
vai à cidade
Ó Clotilde, onde é que vais assim tão asseada?
Sapatos lustrados e com este vestido que é um primor, e
tão cheirosa! Eu vou à cidade. Á cidade! Mas como é que vais? Vou no meu
cadilac. Mas que raio de cadilac é este? Delevina, é o meu carro particular é
só de meu uso exclusivo. Á Clotilde, estás a gozar-me? Delevina, eu não estou a
gozar, eu vou nos meus auto-pés até à vila e depois vou na camioneta para a
cidade. Agora já entendi. Ó Clotilde e não vomitas? Delevina, eu vomito é se me
continuas a fazer perguntas. Clotilde, se vais, as vizinhas vão estranhar e vão
falar mal de ti, tu tens o teu homem embarcado. Louvado seja Deus! Ó Delevina
estás como a água sempre a dar a dar no penado do moinho!
Quanto ao meu homem estar embarcado que tem isso a ver?
Ele está lá e eu estou cá, ele sabe a mulher que tem: Sou uma mulher de
respeito! Clotilde louvado seja Deus; eu sei isso mas estas mulheres são umas marmuradeiras.
Saibas bem que eu estou me “marimbando” para elas. Já não
está aqui quem falou, vai à tua vida Clotilde. – Ó Ermelinda eu vou à cidade,
queres que te compre alguma coisa? Clotilde já que vais faz-me um favor compra
três novelos de linha amarelo canarinho, aqui tens o dinheiro; e que tenhas boa
viagem. E tu Maria da Graça, queres alguma coisa?
Não Clotilde, não quero nada, mas agradeço a tua boa
vontade. Maria da Graça, onde é que compraste o tecido que fizeste a tua blusa?
Ah querida, se não te importas, eu compro igual… Credo Clotilde! Não me importo
não; eu comprei na loja das Chitas, fala com o Sr. Mota que é o dono. O que é
que se passa com estes sapatos até parece que não sei andar, eles são novos
comprei-os a gosto até os experimentei. Sr.ª. Clotilde que andar tão esquisito
tem a senhora. O que se passa? O Sr. Padre não sabe, eu estou imitando uma irmã
do Sr. uma irmã minha! Sim Sr. Padre, por parte de Adão e Eva. Só a Sr.ª, para
dizer uma graça destas. Até logo, Sr.ª Clotilde. – Adeus Sr. Padre – Deus fique
consigo! Deus vaia com vocês – ó Rita mexe este traseiro senão perdemos a
camioneta. Ai vocês viva ao luxo, camioneta nova; eu até julgava que andava
tirando o curso de sucateira de em tanta sucata andar. Ó Clotilde é verdade, e
“novinha de trinco” estou-me regalando toda. E eu quase que deito os fígados
pela boca fora com os pulos que dou neste coxim novo. Já passamos parte da
Lomba do Cavaleiro, a Povoação vista daqui com o casario nas verdes colinas é
deslumbrante.
Isto é que é andar depressa, já estamos chegando ás
caldeiras, não gosto nada deste cheiro, até fico enjoada.
As Furnas são lindas com as azáleas em flor, é
encantadora; ali um rancho de campistas parecem caracóis com a casa ás costas,
sempre com as antenas alerta à procura de bons locais para a acampar. As Furnas
são um paraíso, só que eu não gostava de ser Eva para aqui viver. Ai a lagoa, ó
Sr. condutor pare faz favor, a camioneta, eu estou enjoada. Só me faltava esta,
vá despache-se Sr.ª Clotilde senão a camioneta chega atrasada à cidade. Já lá
vou. A Sr.ª sente-se bem disposta, já lhe passou o enjoo? Enjoo! “Eu enfiei-lhe
foi uma carapuça”. Eu fui tirar uma fotografia à Lagoa. Uma fotografia! E onde
tem a Sr.ª a máquina, que não a vejo? Aqui…Isto são os seus olhos. Pois são,
mas são uma máquina à lá minuto, eu fecho uma vista, abro a outra e já está,
fica cá dentro da minha caixinha de surpresas. Que é isso agora, Sr.ª Clotilde?
Agora o que é a minha cabeça a sua e a dos que aqui vão – é uma caixinha de
surpresas, guarda coisas más e coisas boas da vida. Sr. Cobrador diga ao seu
colega para pôr a música a tocar, sinto-me triste quero alegrar-me.
Sr.ª Clotilde eu sempre ouvi dizer – Quem tem boca não
manda soprar. É verdade sim Sr; mas o lume está apagado, quem o acende está
longe…
Agora, sim, já me sinto bem; à vocês gosto tanto deste
fado, “Não venhas tarde”. Mas porque gostas tanto deste fado? Tu sabes que o
meu homem está embarcado, quando ele estava cá, eu dizia, quando ele ia à
taberna jogar cartas, não venhas tarde. Ó Clotilde, tu és ciumenta para dizeres
isto ao teu homem? Nada disso, eu dizia não venhas tarde senão levas com a
tranca da porta. Á corisca Clotilde, tu dizias isso? Não dizia meu rico homem,
que saudades que tenho dele, quem me dera tê-lo aqui ao pé de mim. O Sr.
Chafeur ponha a tocar “ó tempo volta para trás”, ai se o tempo voltasse para
trás o meu José estava aqui ao pé de mim. Ó Clotilde então não ias para a
cidade? Íamos juntos, a gente ia namorando e abraçando até me consolar toda; ai
saudades coriscas vão vocês por esta janela fora, vão ter com o meu José para
ele vir-se embora daquela Bermuda para mim. Oh vocês! Já estamos na cidade a
camioneta andou depressa: Óh Rita! Olha aquela desavergonhada com um palminho
de saia com as pernas olé, a saia parece ser um abajour de candeeiro e aquela
de pijamas estampados. Há cada moda que é da gente se benzer; elas despem-se
para andar na rua e vestem-se para se deitar; há mulheres que são escravas da
moda. Deixa-me comprar um saquinho de amendoim. Ó Rita vais me ensinar onde é
que fica a Loja das Chitas por alma dos teus. Áh! Pobre Adão que ainda estás
nu, metido nesta parede! O Tribunal da maneira que anda, ainda não teve
dinheiro para te comprar umas cuecas para não estares com a horta à vista de
toda a gente. Rita tens a certeza que é aqui a Loja das Chitas? Á Clotilde é:
Rita, querida, parece ser a loja das fitas de cinema. Olha aqueles
desavergonhados a beijarem-se à frente de toda a gente. Á Clotilde ela parece
estar aluada. Não admira Rita, ela tem falta de ar e ele está a dar-lhe a
respiração boca a boca. Se eu fosse dona da loja punha-lhes por cima um balde
de água fria para os apartar como se faz aos cães da rua. O que é que a Sr.ª
deseja cá da loja? Eu desejo um gelado que estou cheia de calor. A Sr.ª está a
brincar com certeza! Aqui vendemos chitas, flanelas e outros artigos. Eu estava
a brincar; eu quero é três novelos de linha amarelo canarinho para bordar. Aqui
tem a Sr.ª a linha, deseja mais alguma coisa? Eu desejo um pedaço de chita azul
e branca pinta preta como a da Maria da Graça para eu fazer uma blusa. Desculpe
eu não me lembro desta chita mas tenho muitas chitas por aqui ao desbarato é só
escolher. O Sr., é o Sr. Mota? Sou, sim. Então se é Mota, ande depressa,
arranje-me uma chita bonita eu estou com pressa não posso perder a camioneta.
Quanto custa tudo? Dois mil escudos. Credo tão caro! O Sr. Mota vai-me fazer um
desconto. Não posso minha Sr.ª isto é o preço de custo. Também S. Pedro não lhe
desconta os pecados e o Sr., não entra no céu. Rita vais comigo ás retretes? Eu
quero verter águas. Eu também tenho vontade. Foi bom terem feito estas retretes
aqui. Pum; ai que parti a retrete de loiça fina, como é que vai ser, eu não
tenho dinheiro para pagar, eu sou pobre. A Sr.ª que abra a porta para eu ver.
Não posso, não posso abrir os textos não deixam. A corisca desta mulher que
está aí dentro partiu o sifão, e não abre a porta. A Sr.ª abra a porta já.
Ouvi? Abra a porta senão. Afinal a Sr.ª não partiu o sifão! Que raio de
brincadeira e gritaria foi esta? A Sr.ª sabe que gosto de brincar. Mas como é
que ouvi um estrondo tão forte? Fui eu que enchi de ar um saquinho de plástico
que foi dos amendoins, dei-lhe um sopapo e ele estoirou e eu pus-me a gritar.
A Sr.ª é uma “laparosa” eu fiquei com o coração aos pulos.
A Sr.ª não vê que eu sou velha, já não posso apanhar sustos. A Sr.ª que me
desculpe e até à próxima. A Sr.ª quando vier à cidade há-de me trazer uma ração
de chouriço para eu lhe perdoar. Vamos lá ver se a Sr.ª trás. Adeus até
qualquer dia, mal sabes tu que vais morrer desconsolada à espera do chouriço. O
que é que a Sr.ª está dizendo? Digo que qualquer dia trago o chouriço.
Benjamim Carmo
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