A
subir da Vila para as Freguesias ia Dona Aranha, sempre cheia de artimanha a
fazer suas teias nos fetos e pequenos arbustos do Caminho Velho. E, como estava
cheia de fome, estava sempre na mira de alguma incauta mosca lhe cair na teia
para lhe encher o papo. Estava ela nestas divagações, e ficou muito
surpreendida e disse para si própria:
-
Se a minha vista não me engana, ali vem a descer o caminho o defluxo. Onde é
que irá tão apressado?
Eu
bem me parecia que era o Senhor Defluxo a descer o caminho, ainda bem que não
preciso ir ao oculista.
-
Olá, bom dia, Dona aranha, é verdade. A Senhora não se enganou, não.
-
Bom dia, D. Defluxo, onde ide vós? Será que ides p`ra Vila?
-
Vou sim, Dona Aranha, estou cansado de ser mal tratado pelas gentes das
Freguesias.
-
Mas, D. Defluxo, o que é que lhe fizeram para estar assim tão triste e
arrepiado?
-
Diz bem, D. Aranha. Estou arrepiado porque estas gentes das Freguesias não têm
cuidado comigo. Quando estão com gripe, andam sempre ao frio e fico tão
arrepiado e assim a tremer como a D. Aranha está a ver. Não têm mesmo cuidado
algum comigo! Dizem eles que não há tempo a perder, “é preciso aproveitar o
tempo, enquanto não chove temos de semear as favas e as sementeiras primaveris
amanhar as terras e tratar dos animais, este defluxo há-de passar”. E zás vão
com os dedos ao nariz a assoarem-se a atirarem comigo de qualquer maneira
contra o chão, contra as barreiras e contra tudo. Não têm respeito algum por
mim, por isso estou sempre arrepiado e triste.
-
Mas, D. Defluxo, porque vai o senhor para a Vila? Eu não estou a entender!
-
Ora, porque vou… É porque lá sou bem tratado, andam comigo com tanto cuidado
como se tivessem ovos nas mãos. Mal sentem um defluxozinho ou um resfriadozinho
qualquer agasalham-se muito bem, e vamos para cama. E depois que bom que é o
calor, é chazinhos quentinhos e saborosos, e colheres de mel, e xaropes, que é
uma delicia. Agora do que eu não gosto é das pastilhas amargas, que compram na
farmácia, chamam-lhes comprimidos, uf, que peste! Agora uns docinhos de mentol
e outros muito saborosos… gosto tanto, fico todo consolado.
Quando
se assoam é em lenços tão delicados e perfumados! Gosto tanto da Vila, gosto
tanto!
-
Pois eu não gosto nada mesmo.
-
Mas porquê, D. Aranha?
-
O porquê eu já lhe digo, D. Defluxo. O Senhor sabe que eu não é por me gabar,
mas faço trabalhos, um primor, com tanto carinho. Levo horas a fazer as minhas
teias com o meu bom gosto. Às vezes paro para admirar o meu bordado… E zás! Cá
vem elas de vassoura na mão e estragam num abrir e fechar de olhos a minha
linda teia que tanto trabalho me deu a fazer. E depois tenho de fugir ligeira
para não morrer e escondo-me atrás de qualquer coisa onde elas não cheguem. Ás
vezes elas usam o esguicha que me põe zonza e atordoada. Até chego a desmaiar.
Ai, tais trabalhos! O Senhor sabe, o que elas têm é inveja; se elas soubessem
bordar assim os bordados como eu, eles estavam no mundo inteiro. Às vezes fico
com pena delas quando as vejo bordar. Dizem elas que é para América e Canadá…
com certeza que, quando os bordados delas chegam a algum país, eles vão para o
caixote do lixo. O D. Defluxo sabe, eu às vezes para as aborrecer, enquanto
elas pintam as unhas e falam com as vizinhas às portas e janelas ou ficam horas
a falar ao telefone, eu repiso e faço outras teias ainda mais lindas para elas
não se gabarem que têm a casa mais limpa.
Às
vezes é tanto lixo atrás dos móveis que mete nojo… Cala-te língua!... Só vendo,
D. Defluxo.
-
Então é por esta razão que a D. Aranha vai para as Freguesias?
-
É D. Defluxo. Lá em cima, estou mais à vontade.
-
Mas porquê, D. Aranha?
-
Pelas mesmas razões que o Senhor disse à pouco. As mulheres das Freguesias
trabalham muito e às vezes ajudam os maridos nas terras: primeiro são as
sementeiras, depois é recolher o feijão, as favas, os milhos, tratar dos porcos
e galinhas. Elas não estão sempre de vassoura na mão. Posso fazer as minhas
teias com mais vagar. Acredite, D. Defluxo. As moscas nas Freguesias andam mais
à vontade nas pocilgas e casas e aí, com um pouco de sorte, muitas vezes caem
nas minhas teias, pois as moscas são muito curiosas. Eu nas Freguesias até fico
mais gordinha, mais formosa!
-
Então, adeus, D. Aranha, que tenha boa sorte.
-
Igualmente para o D. Defluxo. Adeus!
Benjamim
Carmo
Povoação,
4 de Novembro de 2016.
Sem comentários:
Enviar um comentário