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segunda-feira, 29 de novembro de 2021

COISAS VISTAS A MEU MODO

Chegou-me num abraço amigo do Professor José Luís Brandão da Luz que, mais uma vez, e na senda do muito que tem dado ao longo dos anos pela cultura e preservação da identidade do concelho que lhe foi berço, aqui nos deixa um trabalho que mais do que justíssima homenagem ao seu autor, o saudoso Senhor Benjamim Pimentel do Carmo, é um verdadeiro testemunho do grande tesouro cultural que pode encerrar uma terra como é a da Senhora dos Remédios, encastrada Lomba do Loução, do Concelho da Povoação, cuja Junta de Freguesia merece uma palavra de louvor pelo apoio a esta edição que data de Agosto deste ano 2021.

“Coisas vistas a meu modo” é um verdadeiro testamento de alguém que foi povo na verdadeira essência da palavra e que como tal sempre se assumiu, fazendo questão e guardar no seu coração todas as coisas que bebeu na infância, mesmo longe da terra-berço, quando teve de ir viver para a ilha irmã de Santa Maria, nos tempos áureos do aeroporto que transformou aquela ilha num viveiro de trabalho e prosperidade para muitos açorianos, um pouco como o “el dorado” americano semeado no Atlântico e que de forma tão nobre cantou recentemente Almeida Maia no seu “Ilha-América”.

Conheci o senhor Benjamim do Carmo nos anos noventa do século passado. Foi, durante anos, colaborador do Correio dos Açores e fazia questão que eu lhe fizesse uma revisão prévia dos textos, antes de irem para a composição. Criou-se entre nós uma empatia pela maneira frontal com que abordava as questões, pela defesa intransigente que fazia daquilo em que acreditava e pelo espírito crítico de muitos comportamentos sociais que chocavam com a sua maneira de encarar a vida.

Nascido em 1937, veio a morrer, na sua terra natal em 2017. Só mais tarde soube do seu passamento e este momento é para mim a ocasião de testemunhar o respeito e a amizade que nos unia.

Por isso mesmo, gostei tanto deste livro. Feliz a terra, neste caso a freguesia da Senhora dos Remédios da Povoação, que sabe e consegue assim honrar a memória de quem, ao longo da vida, de forma simples e despreocupada, foi guardando tantos apontamentos em simples cadernos com linhas e que a paciência de Beatriz da Costa Azul permitiu transcrever para depois serem organizados e ordenados por Brandão da Luz.

Não, não é literatura. Benjamim do Carmo era um autodidata que bebia o seu saber nas coisas da terra e no viver do povo. Tudo o que escreveu transmite memória e coração, mas mostra, ao mesmo tempo, e, por vezes, com profundo e verrinoso humor, a sua condenação a tudo quanto era falsidade, hipocrisia, beatice e mexerico, tão próprio e característico de meios pequenos, embora nos meios mais urbanos esteja presente de forma ainda mais refinada e subtil.

“Coisas Vistas a Meu Modo” são no dizer do autor, “pequenas histórias e apontamentos da freguesia onde nasci”. Podem ser pequenas as estórias, mas são grandes as suas lições e maiores ainda as recordações que nos trazem porque, ao fim e ao cabo, há tanto de comum na nossa ruralidade que nos faz identificarmo-nos em muitas das passagens do livro quer nas narrativas, quer nos diálogos em que o autor respeita a forma popular e não ortográfica de muitas das expressões usadas, enriquecido, no final, com um pequeno glossário que explica muitos dos termos usados.

Benjamim do Carmo, como já referi, conhecia a alma do povo da terra onde viveu. As brincadeiras, os jogos de infância que enumera, do pião ao arco, do berlinde às apanhadas; as lutas de galos e as apostas (lá se foi o canivete e seis vinténs); as festas da roda do ano, com algumas coisas bem inéditas como a luta entre o ano velho e o ano novo que, de forma tão característica fica aqui perpetuada.

Mas não esquece as típicas estórias das beatas do lugar – aquela da “pataca” é mesmo de não esquecer, para já não falar das partidas que os mais espertos gostavam de pregar aos mais incautos, como foi aquela da voz no cemitério e dos sapatos para o defunto.

Belíssima iniciativa teve António Medeiros, presidente da Junta de Freguesia, com a sua equipa, em querer perpetuar estas memórias. Como escreveu outro povoacense ilustre, ainda há pouco falecido, o Padre, Professor e Sociólogo, Octávio Henrique de Medeiros, “já se vai tornando lugar-comum afirmar que um povo sem memória é um povo sem história e também sem futuro. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”.

E como diz o Professor Brandão da Luz na belíssima introdução que faz ao livro, “o autor dá largas à imaginação por meio de diversas narrativas de exaltação do maravilhoso, do pitoresco das festas, do caricato dos imprevistos e até de um certo sentido de aventura, como é o exemplo da viagem de Clotilde à cidade”. Exacto! Qualquer leitor fica surpreso com a vida que Benjamim do Carmo dá a esta figura que aparece em algumas das suas narrativas. Põe-na como símbolo da mulher rural, mas “desenrascada” que é capaz de se fascinar com a beleza e que até faz parar o velho autocarro na margem da Lagoa das Furnas, pensando o condutor que ela estava indisposta quando o que ela queria era “tirar um retrato” à lagoa… mesmo sem máquina fotográfica, porque fechar os olhos é a melhor fotografia que pode ficar na gente… E que é capaz até de pregar partidas ao “pessoal da cidade”.

Outro aspecto que me prendeu na leitura deste livro foi a capacidade de Benjamim do Carmo em se “desdobrar” no sentimento, desde o da simples brincadeira, mesmo daquela de fazer tremer o caixeiro, como se vê no conto “o veneno”, em que ele tomou a sério a conversa de que a freguesa se ia matar ali mesmo, como o das atrapalhações de uma dona de casa quando lhe quebram a rotina como fez o marido da Delevina que lhe pôs em casa quatro romeiros de uma vez e nem lugar para eles dormirem havia. E mais uma vez a linha comum é a da generosidade, porque tudo sempre se resolvia, em terras onde dar uma tigela de sopa era sinal de vizinhança e de lição para os netos… “Dá-se” e para nós, depois, se for preciso, põe-se mais água na panela.

Era com este espírito que Benjamim do Carmo visitava presos e doentes e, pelas festas, era capaz de bater à minha porta para deixar nas mãos de minha mulher um saboroso bolo de massa da sua Lomba.

Há livros que valem pela Literatura. Este vale pelo coração. De quem o escreveu, e também de quem não deixou que morresse no esquecimento da poeira do tempo. É com carinho e gratidão este meu abraço ao professor Brandão da Luz, à jovem Beatriz da Costa Silva e à Junta de Freguesia, à data da edição do livro, na pessoa do seu Presidente, António Medeiros.


Santos Narciso


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