“Pão-por-Deus,
por alma dos seus”. Neste dia 1 de Novembro, era este o pregão nas ruas da
gente pobre que sempre fomos. Não é uma tradição açoriana, já que terá sido
trazida pelos primeiros habitantes e reconhecem-se as suas origens em vários
pontos do Continente. O que se sabe é que o “Pão-por-Deus” ganhou contornos
especiais nas ilhas, fruto do isolamento, das fomes e dos cataclismos e daqui
partiu para outras paragens há quase 300 anos, como acontece em Santa Catarina
na Brasil.
Começou
por ser um peditório pelas almas, para se tornar mais tarde, um dia de
partilha, do pouco que havia e de que tudo se dava. Dar um pão pelas almas,
nesta altura do ano, era como que fazer o regresso de memórias e dores,
despejadas do alto das torres que não se cansavam de repetir os “sinais” a
lembrar que “as misérias deste mundo um dia passam”.
Tive
a dita de conhecer, na Comissão Reguladora dos Cereais dos Açores, o grande
etnógrafo que foi Francisco Carreiro da Costa. Disse-me ele um dia, por esta
altura do ano, que a tradição do Pão-por-Deus era das coisas menos estudadas
dos Açores. E explicava: “Como grande parte do nosso povo precisa de esmola
todos os dias, nunca ninguém se preocupa em estudar o motivo de haver o dia da
esmola uma vez no ano”. E é curioso notar que num dos livros mais importantes
de investigação das tradições açorianas, do final do século XIX, “A Alma do
povo Micaelense”, do Padre Ernesto Ferreira, se fala de tanta tradição e esta
nem seja mencionada. Igual vazio se nota no Cancioneiro, tanto de Teófilo de
Braga, como de Armando Cortes-Rodrigues, a avaliar pelo estudo feito na tese de
doutoramento de José de Almeida Pavão Jr..
“Pão-por-Deus”
andava na boca das pessoas e congregava não só as crianças, mas gente graúda
que não resistia ao sabor de um prato de milho cozido ou a um punhado de
castanhas cozidas.
Aliás,
no “ Pão-por-Deus”, todos os que podiam tinham nas suas casas uma boa panela de
milho cozido, de preferência branco misturado com amarelo, e as castanhas eram
indispensáveis, compradas à quarta (medida de que hoje poucos se lembrarão) e
cozidas para dar e comer. Rebuçados e guloseimas, tudo isto surgiu mais tarde
para gáudio do rapazio e das meninas que neste dia lá iam tirando o desconsolo
de todo o ano, mesmo com os rebuçados feitos em casa, com calda de açúcar e um
pouco de vinagre.
O
São Martinho não fazia parte das tradições rurais dos Açores e era nestes dias
que se coziam as castanhas e se bebia um copo “pelas almas”.
Da
tradição fica a recordação das saquinhas de chita, ou de quadradinhos de
fazenda que as crianças levavam e que gostavam de trazer cheias de doces ou
outras guloseimas. Mais que tudo, ficava o agradecimento e para quem abria a
porta, a sensação de “já termos estado no outro lado da barricada”. E
recorda-se sempre a forma como se dizia:
Abre
a porta ao Pão-por-Deus
Dá-me
qualquer esmola
Seja
por alma dos seus
O
que puser na sacola….
Segundo
o Prof. Rubens Pavão, “era uma das tradições mais arreigadas na alma do povo de
S. Miguel e dos Açores, em geral, a qual teve a sua origem no sufragar as
almas, as chamadas esmolas perdidas, por serem fora de casa e distribuídas no
maior recato. Sobretudo nas freguesias rurais, mas também na cidade, viam-se,
no dia 1 de Novembro, grupos de crianças que andavam de porta em porta, pedindo
Pão por Deus, recolhendo em saquinhas, dinheiro e guloseimas e, por vezes
mesmo, alguns géneros alimentícios; afinal, todos davam o que tinham por casa.
Era grande o reboliço dos grupos e, lugares havia, em que iam mesmo entoando:
Pão por Deus, fia a Deus/Seja tudo pelo Amor de Deus!"
José
Manuel Santos Narciso
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