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terça-feira, 12 de dezembro de 2017

VESTÍGIOS DE FENÍCIOS NOS AÇORES? O QUE DIZEM OS ARQUEÓLOGOS

Categoria: Destaque Principal
Criado em 12-12-2017
Escrito por com João Paz
A 10 de Dezembro, a convite do Correio dos Açores, e com o apoio da Junta de Freguesia de Nossa Senhora dos Remédios, uma equipa multidisciplinar fez uma visita a uma propriedade privada da Ribeira dos Bispos, onde, alegadamente, e conforme noticiado pela página “Olhar Povoacense”, se encontrou, na opinião de quem surge no vídeo, “uma necrópole púnico-fenícia” com “1000 anos”.

Segundo a mesma fonte, a estrutura terá servido para “guardar cinzas dos corpos cremados” de povos que teriam estado nos Açores antes da chegada dos portugueses.

A RTP Açores noticiou o alegado achado, no telejornal de 9 de Dezembro, em entrevista a Félix Rodrigues, doutorado em Ciências do Ambiente – Poluição (conforme consta no currículo público do próprio, na plataforma DeGóis). 

Apesar de não ter habilitações académicas nas áreas de Arqueologia, História, Antropologia ou Património, surge frequentemente identificado como ‘investigador do passado histórico açoriano. Tendo em conta a polémica e contestação geradas, o Correio dos Açores optou por consultar a opinião de licenciados e mestres nas referidas áreas, de várias universidades portuguesas.

Três arqueólogos e um historiador da arte e património desconstruíram e demarcaram-se dessa hipótese, que classificaram como não tendo qualquer fundamento.

Para a equipa - que visitou o local informalmente, ainda que com a devida autorização do proprietário, por via da Junta de Freguesia – “o mais importante na sua ida ao sítio era o esclarecimento da opinião pública sobre os pontos fundamentais de qualquer estudo do passado: a metodologia científica e o contexto”. 

“Para se alegar categoricamente um facto, há que ter provas devidamente sustentadas do que se afirma e não apenas colocar uma hipótese como absoluta e entender que o ónus da prova está do lado do contraditório,” – refere Diogo Teixeira Dias.

N’Zinga Oliveira reforça o que já foi dito pelos especialistas Francisco Contente Domingues (História - Expansão Portuguesa) e Ana Margarida Arruda (Arqueologia - Estudos Fenícios), numa reportagem da TVI de 4 de Novembro deste ano: “Não há indícios arqueológicos de presença pré-portuguesa nos Açores, pelo que não podemos afirmar a anterior comparência – e muito menos a fixação – de sociedades complexas ou mesmo de pequenas comunidades humanas”.
 
“Não se desconsidera, no entanto, que não houvesse indícios da existência das ilhas atlânticas para os navegadores do período tardo-medieval e moderno – mas ocupação de povos clássicos (ex. romanos) ou pré-clássicos (ex. fenícios) é, à luz das actuais estruturas encontradas em todas as ilhas, bem como das cronologias dos povos, de descartar. A civilização púnico-fenícia extinguiu-se em 146 a.C., com a queda de Cartago às mãos romanas. Roma, por sua vez, cairia em 476 d.C.

“Os meios disponíveis, as técnicas de navegação e as próprias prioridades e vocações dessas sociedades - que não corriam o risco do mar-alto – não só não permitem fazer esse juízo de facto, como até o contrariam”. 

Neste contexto, “é pouco provável ter-se chegado aos Açores sem vela latina e um navio de tonelagem considerável, nem por total acidente. Só em termos de critérios naturais, há que ter em conta os ventos, a hidrografia, a meteorologia, a distância. Os critérios humanos são ainda mais abrangentes e complexos: a logística de preparação de um navio e a quantidade de recursos materiais e humanos empenhados numa viagem, a qualquer parte do Atlântico Norte, deixam sempre uma abundância de evidências directas e indirectas,” – complementa Diogo Teixeira Dias.

“Onde estão as evidências materiais de hipotéticas fixações de pessoas, que subitamente decidiram criar aqui sepulturas, antes do período das descobertas marítimas?” – reforça João Araújo.
Para Pedro Pascoal de Melo, a estrutura – que já há muitos anos é conhecida pelos locais, “e que agora foi feita passar por recente ‘descoberta’ – é claramente um pombal escavado na rocha. Muito provavelmente um aproveitamento de uma cavidade natural, que foi melhorada e alargada pela mão do homem”. 

“Estará certamente ligado a uma pequena exploração agrícola que aqui existiria, contemporânea dos moinhos de água que aqui estão próximos. Os pombais eram uma forma expedita de os habitantes das zonas mais carenciados em terra e recursos garantirem carne e ovos para reforçarem a sua alimentação e estrume para fertilizar a terra. Não deixa de ser interessante por isso, antes pelo contrário, é uma estrutura que, devidamente contextualizada e identificada, poderá integrar uma eventual rota dos moinhos da Povoação, junto com a levada e os moinhos de água aqui existentes”. Os restantes membros do grupo concordam.

O arqueólogo náutico Alexandre Monteiro, que na década de 90 criou a carta arqueológica subaquática do arquipélago, e escavou vários naufrágios nas águas regionais, contactado pelo ‘Correio dos Açores’, concorda com as considerações dos colegas que estiveram no local e atenta que este caso, somado ao das alegadas ‘descobertas’ de vestígios pré-medievais nas ilhas do Pico e da Terceira, é paradoxal: “por um lado, alega-se que os arqueólogos e historiadores legítimos querem, por via de uma qualquer teoria da conspiração, negar a existência desses povoamentos, defendendo que assim ficaria ilegitimada a primazia da descoberta das ilhas pelos Portugueses do século XV - ora, nada nos daria mais prazer do que encontrar nestas ilhas um naufrágio fenício ou uma cidade romana. Por outro lado, é no mínimo dar um tiro no pé quando, perante a riqueza arqueológica que realmente existe nos Açores -as centenas de naufrágios únicos no mundo, muitos deles capazes de deixar encostados a um canto muitos dos melhores museus navais do globo, assim sejam descobertos, escavados e musealizados – se insiste em criar uma estória da Carochinha com alinhamentos solares, deusas fenícias e escritos rupestres misteriosos que só existem na cabeça de alguns. Esta situação, à semelhança do que acontece com casos muito parecidos, como os das ´pirâmides´ de Guimar, nas Canárias; ou de Visocica, na Bósnia, lança não só o descrédito sobre a arqueologia açoriana, como cobre de ridículos os habitantes locais que nelas acreditam,” concluiu Alexandre Monteiro.

Todos os participantes na visita demonstraram “não só preocupação com a adesão do público a esta divulgação de falácias, como também pelo facto de a comunicação social televisiva e jornalística não se socorrer dos especialistas das áreas para esclarecer a realidade – vastamente disponíveis em território insular e nacional”.

“De facto, notícias destas podem incorrer no erro de valorizar falsos contextos em busca do sensacionalismo, deixando o verdadeiro valor patrimonial de vestígios que marcam e preservam a identidade local e regional, votado ao abandono.

Manter o património cultural é preservar a nossa identidade mas requer maturidade científica e responsabilidade” – conclui N’Zinga Oliveira.

In Jornal Correio dos Açores:
Dados dos Convidados do Correio dos Açores
Nome: Diogo Teixeira Dias
Naturalidade: Coimbra
Habilitações Académicas: Lic. Arqueologia e História (Universidade de Coimbra); Mestrado em História (Universidade de Coimbra); Especialização em História Insular e Atlântica (Universidade dos Açores).
Nome: Nzinga Oliveira
Naturalidade: Luanda
Habilitações Académicas: Lic. História Variante de Arqueologia (FCSH-Universidade Nova de Lisboa); Mestrado em História Insular e Atlântica (Universidade dos Açores).
Nome: Pedro Pascoal de Melo
Naturalidade: Ponta Delgada
Habilitações Académicas: Lic. Património Cultural (Universidade dos Açores); Pós-graduação em Património, Museologia e Desenvolvimento (Universidade dos Açores).
Nome: João Gonçalves Araújo
Naturalidade: Ponta Delgada
Habilitações Académicas: Lic. em Arqueologia (Universidade de Lisboa); Mestrado em Arqueologia (Universidade de Lisboa).


Povoação, terça-feira, 12 de dezembro de 2017.

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