Entender a nossa identidade - a de
portugueses, sim - é mais complexo do que possa parecer à partida, em função de
os traços que nos distinguem serem objecto de construções prévias com as quais
não temos necessariamente de identificar-nos.
Assim é com a História,
dos mitos fundacionais às ideias de grandeza nacional por vezes exacerbadas,
estando os descobrimentos à cabeça. Reescrever a História, nesses casos, é
ainda mais difícil do que o habitual e pode levar os investigadores a tomar
caminhos invulgares. Assim é com Joaquim Fernandes, que, para questionar a
primazia dos portugueses na navegação atlântica, recorreu à ficção, género
apoucado num ambiente académico de que ele mesmo faz parte. A descrição de uma estátua
equestre encontrada pelos portugueses quando chegaram ao mais remoto canto dos
Açores, feita por Damião de Góis, é o ponto de partida para uma eventual
reescrita da História, que encontra no romance "O Cavaleiro da Ilha do
Corvo" (Círculo de Leitores, 2008) suporte pouco ortodoxo.
Escreveu a medievista
norte-americana Nancy F. Partner que os factos históricos, mediante a acção do
historiador, são transformados em "artefactos construídos cuja origem
cognitiva partilham com qualquer invenção ou ficção". Tal premissa,
evidentemente desmontável e pouco relevante se abstraída do contexto, pode
funcionar, aqui, como legitimação de um romance que pretende dar força à
possibilidade de fenícios terem tocado o meio do oceano antes das caravelas
lusas: à descrição de Damião de Góis na Crónica do Príncipe D. João, ao longo
dos cinco últimos séculos remetida para a gaveta das lendas de marinheiros, o
historiador contrapõe um mapa existente na Biblioteca de Parma e datado de
1367, a par de outros elementos. Mais do que fazer valer uma tese, para o que
teria de sujeitar-se à avaliação pelos pares, quer que o assunto deixe de ser
varrido para debaixo dos tapetes da memória.
Resuma-se, enfim, a ideia
que o historiador, docente na Universidade Fernando Pessoa, transmite através
do citado livro ("criei um esqueleto ficcional e meti a carne dos factos
lá dentro", diz): é sustentada a ideia de que navegadores fenícios
(eventualmente por acaso, atendendo a que as incursões de navios mediterrânicos
no Atlântico eram feitas em cabotagem) terão tocado os Açores muito antes dos
descobridores portugueses; o ponto de partida é a já referida descrição (no
capítulo IX da crónica, "em que ho author tratta algumas particularidades
das Ilhas dos Açores, e de huma antigualha que se nellas achou") de Damião
de Góis, que, enquanto pagem da Corte, terá testemunhado a chegada a Lisboa dos
restos da estátua, mas associam-se-lhe outros vestígios, com destaque para o
mapa que aqui reproduzimos e no qual, junto a uma ilustração que poderá ser entendida
à longitude dos Açores, está escrita a frase em Latim "Estas são as
estátuas diante das Antilhas", marcando o limite do oceano navegável;
juntam-se nove moedas descobertas nos Açores e atribuídas ao século IV a.C., um
amuleto descoberto na ilha de S. Miguel e, ainda, uma laje encontrada há 12
anos na Terceira, contendo petróglifos, alguns dos quais, segundo um
especialista da universidade de Lovaina, Herbert Sauren, poderão ser produzidos
por mão humana e serão eventualmente fenícios; junta-se a tudo isso trechos da
historiografia árabe e aristotélicos.
Dando de barato a
circunstância de a descoberta dos Açores ser normalmente mostrada por visões
propagandísticas da grandeza pátria, é também certo que nunca foi um tema
pacífico. Teses há, inclusivamente, que localizam no reinado de D. Afonso IV,
isto é, no primeiro quartel do século XIV, apoiadas em fontes cartográficas nas
quais o mapa de Pizzigani poderia ser inserido (Fernando Carreiro da Costa, no
artigo que assina no Dicionário de História de Portugal dirigido por Joel
Serrão, referencia historiadores que se apoiam em mapas genoveses da segunda
metade de Trezentos, nas quais surgem esboços de ilhas que poderiam pertencer
aos Açores; tais teses, que põem de parte a antiga cartografia em que abundavam
as ilhas imaginárias, não questionam, porém, a primazia lusa, atribuindo a
descoberta a marinheiros genoveses ao serviço da coroa portuguesa).
Joaquim Fernandes
questiona, sobretudo, os porquês de, perante tais evidências, não haver
"abertura para uma investigação séria". Em causa não está a essencial
circunstância de os portugueses terem descompartimentado o Mundo, mas a
necessidade de não ter medo de afirmar que outros houve antes de nós (a
possibilidade de África ter sido contornada do Índico para o Atlântico, muito
antes de Bartolomeu Dias, é outro caso pouco estimado). "A história é
sempre construída pelos vencedores", frisa Joaquim Fernandes, lembrando
que o imaginário atlântico é "um grande caldeirão em que o envolvimento
português é apenas uma leitura".
Diz do livro que a base
de sustentação não pode deixar as pessoas indiferentes, admite ter optado pelo
romance para "facultar uma leitura mais agradável" e avança que vão
ser transpostas para o ecrã as aventuras que inventou. José Mattoso, insigne medievista
português, escreveu em tempos que "a História, tornada apenas narrativa,
em nada difere da ficção". Mas isso é outro filme.
In Jornal de Notícias https://www.jn.pt/domingo/interior/terao-os-acores-sido-tocados-pelos-fenicios-980520.html
Povoação, Segunda-feira, 18 de
dezembro de 2017.
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