"Há 55 anos, o aeroporto
de Santa Maria foi o ponto de partida de uma odisseia que entrou para a
história da aviação comercial. Com apenas 16 anos, Daniel Melo viajou 3.600
quilómetros sobre o Atlântico escondido no trem de aterragem de um avião.
Numa noite de lua cheia, a 9
de Setembro de 1960, Daniel Melo avista o Lockheed Super Constellation que se
prepara para levantar voo no extremo da pista principal do aeroporto
internacional de Santa Maria. A aeronave das linhas aéreas venezuelanas, um
quadrimotor a hélice, reconhecível pelo leme triplo, aquece os motores para
descolar rumo a Caracas, via Bermuda. Daniel, de apenas 16 anos, corre pela
pista e sobe para o compartimento do trem de aterragem dianteiro. Depois de
algumas tentativas falhadas, está em andamento o plano de atravessar o
Atlântico e cumprir o objectivo final de chegar à América — como passageiro
clandestino.
Daniel Melo, de baixa
estatura, tenta ajeitar-se no compartimento exíguo, enquanto o avião atinge a
velocidade de descolagem. O piloto da LAV (Línea Aeropostal Venezolana) faz
subir o trem de aterragem. O equipamento hidráulico comprime o passageiro
contra a parede de metal, a poucos centímetros da roda em circulação. O
movimento repete-se meia dúzia de vezes, porque as portas do compartimento não
fecham devidamente. De cada vez que o trem sobe, Daniel Melo quase sufoca.
Quando o alçapão se fecha, Daniel abre uma porta interior para a área
electrónica e hidráulica do avião - o que terá feito a diferença entre a vida e
a morte.
Depois de algumas voltas à
ilha, enquanto tenta resolver o problema do trem, o comandante vê o alerta da
abertura da porta interior, que impede a pressurização correta da cabine. Pede
autorização à torre de controlo para voar a uma altitude inferior até ao
destino: o arquipélago das Bermudas, a cerca de 3.600 quilómetros de distância.
O voo deveria decorrer a 18.000 pés, mas acaba por seguir a um nível de 8.000
pés. A porta aberta faz com que a temperatura se mantenha a níveis suportáveis,
devido ao ar quente que chega do compartimento contíguo. Caso contrário, Daniel
Melo poderia ter morrido devido à hipotermia e falta de oxigénio.
Daniel deita-se paralelo ao
eixo do trem de aterragem. Apesar do barulho ensurdecedor dos motores e do
vento, consegue adormecer. "Sonhei que estava em Nova Iorque",
contara anos mais tarde numa entrevista ao programa Gente Nos., da RTP Açores.
Alimenta-se apenas com três "papo-secos" que levara consigo. Depois
de nove horas e meia de viagem, em que esteve praticamente imóvel, o avião
aterra na Bermuda, entre as 06h00 e as 6h30 da manhã, com o dia a raiar. O
passageiro clandestino pensa em saltar enquanto o avião dá a volta lentamente,
quando avista militares norte-americanos de um lado da pista. Do outro, vê o
mar. Conseguira parte do objectivo, mas ainda estava longe da América.
Daniel Correia Melo nasceu a
22 de novembro de 1943 nas Furnas, na ilha de São Miguel, num meio familiar
humilde. Em 1950, com apenas sete anos, acompanhou os pais e dois irmãos quando
a família se mudou para Santa Maria. O aeroporto internacional, construído
pelos norte-americanos como base militar, no final da II Guerra Mundial, estava
no auge da actividade enquanto importante ponto de ligação entre a Europa e as
Américas, onde as grandes companhias aéreas faziam escalas para reabastecimento
nos voos intercontinentais. A família morava no Bairro Operário e o pai
trabalhava no cinema do Aeroporto — onde Daniel via os filmes de Hollywood que
o faziam querer procurar uma vida melhor na terra das oportunidades.
O planeamento da viagem
começou aos 14 anos — Daniel aprendia o ofício de carpinteiro nas oficinas do
Aeroporto e já ouvira relatos de tentativas semelhantes, nos aviões militares
que partiam da Base das Lajes, na Terceira. Observou de perto os diferentes
tipos de aeronaves, quando fazia incursões pela placa com os amigos, às
escondidas da polícia. Escolheu o avião, a companhia aérea e o destino. "O
meu plano foi perfeito", recordou ao jornal Portuguese Times, de New
Bedford, duas décadas depois da viagem. "Sempre gostei de aventura."
A intenção passava por aterrar
de noite na Bermuda e fugir para o porto, onde embarcaria clandestinamente num
cargueiro para os Estados Unidos. Contudo, o atraso à saída dos Açores fez com
que o avião aterrasse já de dia e fosse descoberto pela tripulação.
"Ouvimos um ruído áspero e depois um outro, como se alguém estivesse a dar
pancadas nalguma coisa", contou o co-piloto, Eugene Moberg, aos jornalistas
locais, que dão à história projecção internacional. "Pensámos que a porta
se tivesse fechado, mas ao chegarmos à Bermuda um elemento da equipa de terra
da LAV viu o Daniel agarrado ao eixo da roda como um macaco'', acrescentou.
Depois de conversarem entre
si, a tripulação decide não o entregar às autoridades. Em vez disso, levam-no a
uma casa de banho para retirar a sujidade do pneu e Daniel regressa ao avião,
agora ao interior da cabine, onde lhe servem o pequeno-almoço. O voo para
Caracas, o destino final, demora outras oito horas. Daniel fala com a
tripulação, arranhando o castelhano, e anda descontraidamente pela cabine. Sem
documentos à chegada, é levado para o consulado de Portugal. Perguntam-lhe o
nome e a idade e o cônsul decide entregá-lo à polícia de imigração venezuelana.
O comandante do avião propõe-lhe duas alternativas: pode perfilhá-lo ou
oferecer-lhe uma das filhas em casamento, o que Daniel rejeita.
Após passar uma noite detido,
regressa no dia seguinte a Portugal, mas a Lisboa, via Bermuda, noutro Constellation
da LAV, onde é colocado à guarda das autoridades. A odisseia aérea chamara a
atenção da imprensa internacional e à chegada Daniel tem à espera um grupo de
jornalistas portugueses. É abordado por dezenas de pessoas, que o cumprimentam
pela proeza. A façanha tem destaque de capa em dois dos maiores jornais
portugueses - O Século e o Diário de Notícias - que salientam o seu ar franzino
e relatam a viagem como um misto de espírito aventureiro e inconsciência
juvenil. "O rapaz que viajou no vão da roda de um avião chegou a Lisboa e
jurou que não repetiria a proeza", titula o DN. "Tiveste medo?",
pergunta o jornalista de O Século. "Eu não senhor. Mas aquilo foi muito
perigoso ao que me disse o capitão do avião, e poderia ter morrido."
O feito continua a ser raro na
história da aviação. Daniel é um dos 25 passageiros clandestinos que
sobreviveram a um voo no compartimento do trem de aterragem de um avião — o que
representa 24 por cento das tentativas. A maior parte sucumbe à hipotermia e
falta de oxigénio. Os dados são de um relatório da Federal Aviation
Administration (FAA), entidade que regula a aviação civil nos EUA e referem-se
aos casos ocorridos desde 1947, a nível mundial.
No dia 13 pelas 22h00, quatro
dias após a partida, Daniel está de volta a Santa Maria. O comandante da LAV
informa o agente da PIDE de serviço no aeroporto que transporta um deportado e
Daniel é interrogado sumariamente, de acordo com os documentos do processo
depositados nos arquivos da Torre do Tombo. O chefe do posto da PIDE do aeroporto
comunica com a sede, em Lisboa, a perguntar como deve proceder em relação ao
passageiro clandestino, referindo-se à "ocorrência que foi largamente
relatada nos jornais". A resposta é desconcertante: trata o caso como se
fosse um acontecimento banal. "O procedimento a adoptar com ele deve ser o
mesmo que é tomado em casos idênticos." Só no dia 15 é detido para prestar
declarações. Diz à PIDE que não planeou a viagem nem sabia o destino do avião e
que queria apenas fugir de casa devido a uma discussão familiar. Sai com termo
de identidade e residência, acusado de emigração clandestina e o processo
enviado para o Ministério Público — acaba condenado a três anos, com pena
suspensa.
Confinado a Santa Maria,
Daniel Melo continua a trabalhar no próprio aeroporto, onde vê os aviões
descolarem em direcção à América. Combate na guerra colonial, entre 1965 e
1967, como cabo atirador, em Angola. Só consegue emigrar legalmente para os EUA
10 anos depois da viagem clandestina, para trabalhar numa fábrica. E é na América
que continua a viver, em Fall River, no estado de Massachusetts, passado mais
de meio século do seu feito épico".
Recorte de jornal retirado da
primeira página de O Século de 13/09/1960
Ilustração: Walter Molino
Texto: Pedro Barros Costa
Fonte: Revista LPAZ (vol. 1 | Maio de 2015)
Fonte: Revista LPAZ (vol. 1 | Maio de 2015)
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