Ruy de Carvalho é, nos dias que correm,
um homem que, finalmente, aprendeu com quem estava a lidar. Bateu-lhe à porta.
E à porta de outros irá ainda bater. Para que também aprendam.
Num texto publicado ontem no Facebook, o
veterano ator revela-se indignado com o ministério das Finanças, que acusa de
“institucionalizar o roubo”, perante “o silêncio do Primeiro–Ministro e os
olhos baixos do Presidente da República”.
Ruy de Carvalho esclarece que decidiu
manifestar a sua indignação depois de ter recebido uma carta das Finanças que
indica que já não é “artista” e passou a ser apenas “prestador de serviços”,
deixando de ter direitos conexos e de propriedade intelectual.
Eis papel:
Senhores Ministros:
Tenho 86 anos, e modéstia à parte, sempre
honrei o meu país pela forma como o representei em todos os palcos, portugueses
e estrangeiros, sem pedir nada em troca senão respeito, consideração, abertura
– sobretudo aos novos talentos – e seriedade na forma como o Estado encara o
meu papel como cidadão e como artista.
Vivi a guerra de 38/45 com o mesmo cinto
com que todos os portugueses apertaram as ilhargas. Sofri a mordaça de um
regime que durante 48 anos reprimiu tudo o que era cultura e liberdade de um
povo para o qual sempre tive o maior orgulho em trabalhar. Sofri como todos, os
condicionamentos da descolonização. Vivi o 25 de Abril com uma esperança
renovada, e alegrei-me pela conquista do voto, como se isso fosse um epítome
libertador.
Subi aos palcos centenas, senão milhares
de vezes, da forma que melhor sei, porque para tal muito trabalhei.
Continuei a votar, a despeito das mentiras
que os políticos utilizaram para me afastar do Teatro Nacional. Contudo, voltei
a esse teatro pelo respeito que o meu público me merece, muito embora já coxo
pelo desencanto das políticas culturais de todos os partidos, sem excepção,
porque todos vós sois cúmplices da acrescida miséria com que se tem pintado o
panorama cultural português.
Hoje, para o Fisco, deixei de ser Actor… e
comigo, todos os meus colegas Actores e restantes Artistas deste país – colegas
que muito prezo e gostava de poder defender.
Tudo isto ao fim de setenta anos de
carreira! É fascinante. Francamente, não sei para que servem as comendas, as
medalhas e as Ordens, que de vez em quando me penduram ao peito?
Tenho 86 anos, volto a dizer, para que
ninguém esqueça o meu direito a não ser incomodado pela raiva miudinha de um
Ministério das Finanças, que insiste em afirmar, perante o silêncio do
Primeiro-Ministro e os olhos baixos do Presidente da República, de que eu não
sou actor, que não tenho direito aos benefícios fiscais, que estão consagrados
na lei, e que o meu trabalho não pode ser considerado como propriedade intelectual.
Tenho pena de ter chegado a esta idade
para assistir angustiado à rapina com que o fisco está a executar o músculo da
cultura portuguesa. Estamos a reduzir tudo a zero… a zeros, dando cobertura a
uma gigantesca transferência dos rendimentos de quem nada tem para os que têm
cada vez mais.
É lamentável e vergonhoso que não haja um
único político com honestidade suficiente para se demarcar desta estúpida
cumplicidade entre a incompetência e a maldade de quem foi eleito com toda a
boa vontade, para conscientemente delapidar a esperança e o arbítrio de quem,
afinal de contas, já nem nas anedotas é o verdadeiro dono de Portugal: nós
todos!
É infame que o Direito e a Jurisprudência
Comunitárias sirvam só para sustentar pontualmente as mentiras e os joguinhos de
poder dos responsáveis governamentais, cujo curriculum, até hoje, tem
manifestamente dado pouca relevância ao contexto da evolução sociocultural do
nosso povo. A cegueira dos senhores do poder afasta-me do voto, da confiança
política, e mais grave ainda, da vontade de conviver com quem não me respeita e
tem de mim a imagem de mais um velho, de alguém que se pode abusiva e
irresponsavelmente tirar direitos e aumentar deveres.
É lamentável que a senhora Ministra das
Finanças, não saiba o que são Direitos Conexos, e não queiram entender que um
actor é sempre autor das suas interpretações – com direitos conexos, e que um
intérprete e/ou executante não rege a vida dos outros por normas de
"excel" ou por ordens “superiores”, nem se esconde atrás de discursos
catitas ou tiradas eleitoralistas para justificar o injustificável,
institucionalizando o roubo, a falta de respeito como prática dos governos, de
todos os governos, que, ao invés de procurarem a cumplicidade dos cidadãos, se
servem da frieza tributária para fragilizar as esperanças e a honestidade de
quem trabalha, de quem verdadeiramente trabalha.
Acima de tudo, Senhores Ministros, o que
mais me agride nem é o facto dos senhores prometerem resolver a coisa, e nada
fazer, porque isso já é característica dos governos: o anunciar medidas e
depois voltar atrás. Também não é o facto de pôr em dúvida a minha honestidade
intelectual, embora isso me magoe de sobremaneira. É sobretudo o nojo pela
forma como os seus serviços se dirigem aos contribuintes, tratando-nos como
criminosos, ou potenciais delinquentes, sem olharem para trás, com uma
arrogância autista que os leva a não verem que há um tempo para tudo,
particularmente para serem educados com quem gera riqueza neste país, e naquilo
que mais me toca em especial, que já é tempo de serem respeitadores da
importância dos artistas, e que devem sê-lo sem medos e invejas desta nossa
capacidade de combinar verdade cénica com artifício, que é no fundo esse nosso
dom de criar, de ser co-autores, na forma, dos textos que representamos.
Permitam-me do alto dos meus 86 anos
deixar-lhes um conselho: aproveitem e aprendam rapidamente, porque não tem
muito tempo já. Aprendam que quando um
povo se sacrifica pelo seu país, essa gente, é digna do maior respeito… porque
quem não consegue respeitar, jamais será merecedor de respeito!
RUY DE CARVALHO
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