terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

ANO DE 1946 - PESCA DO ALTO MAR E TRAGÉDIA

Incentivados pelas boas perspectivas lançadas ao tempo pelo industrial Lori, e aproveitando não só a experiência alcançada por alguns velhos sábios pescadores do porto da Ribeira Quente, que estiveram ou estavam ao serviço de algumas embarcações de pesca do bonito e atum, do referido industrial dos lados de Santa Clara ou Nordela, mas também a certeza de que arranjariam facilmente tripulações na Ribeira Quente, dois comerciantes desta localidade investiram nesse tipo de embarcações motorizadas, porque o futuro parecia ser promissor.


António Inácio Flor de Lima, homem empreendedor, juntando-se a Manuel Pacheco de Medeiros Júnior, da Vila da Povoação, mandou fazer uma embarcação idêntica às do Lori, mesmo na Ribeira Quente, visto que já ali existiam dois valiosos carpinteiros-calafates, o Sousa e o Horácio, ambos com vastos conhecimentos de construção de barcos de pesca artesanal.

O outro comerciante foi Luiz Linhares de Deus. Este, de parceria com o muito experiente lobo do mar da localidade, José Narciso, também se lançaram na mesma senda.


Este tipo de embarcações veio, de certo modo, revolucionar os velhos costumes dos pescadores da Ribeira Quente, porque lhes abria a porta para a pesca em mar largo.


No ano de 1946, depois de já há muito exercerem este tipo de pesca industrial, mais chamada de pesca de alto mar, estando estas duas embarcações nas imediações da Ilha de Santa Maria, foram as mesmas apanhadas por uma tremenda tempestade - não existiam meios de comunicação a bordo porque a navegação ainda dependia mais do conhecimento dos mestres das embarcações do que da informação - que começou na noite de 4 para 5 de Outubro deste acima referido ano.


A "Lancha do Narciso" (sempre assim denominada), com este velho timoneiro ao leme, tentou fazer-se ao largo, mas foi impedida pela força do vento e vagas. Tendo sido arrastada na direcção do litoral, veio a despedaçar-se perto do "Calhau da Roupa", situado entre a Ponta do Marvão e o porto daquela ilha.


Por volta das dez horas da manhã do dia 5, a outra embarcação, depois de uma noite de odisseia, entrou espectacularmente na doca de Ponta Delgada.


Morreram dezassete pescadores no porto de Vila do Porto, entre os quais Júlio Bento do Couto, de 44 anos de idade, casado na Ribeira Quente.


No porto de Ponta Delgada, devido a esta tempestade, morreu esmagado entre a muralha e o barco do Anhanha, outro filho da Ribeira Quente, João Rita.


Também nessa noite de tempestade a escola mista conhecida como "Escola do Saraiva" foi levada pelo mar, assim como quase toda a muralha de protecção à mesma, que também protegia o acesso à Ponta do Garajau e dali avante.

A zona entre a Ribeira e o Fogo ficou profundamente cavada e a praia desapareceu porque o mar continuou a buscar o espaço que era seu.


Tinha então a Ribeira Quente uma população de 2070 almas distribuídas por 460 fogos que eram insuficientes, porque alguns dos edifícios não eram habitáveis.


Da visita feita no ano anterior pelo sub-secretário das Obras Públicas nada transpareceu além das tradicionais promessas. Porém, em Fevereiro desse ano trágico, o povo desta localidade recebeu a visita de uma viatura que andava pelos povoados dos Açores, a mostrar, através de uma câmara cinematográfica, a "Viagem Presidencial de Carmona aos Açores em 1941" e, simultaneamente, o filme trágico dos pescadores de Varzim, o "Ala-Arriba" de forte comoção!


E assim se respondia a prementes necessidades deste povo sempre a sofrer um rigoroso destino.


Foi do Livro de Assentos da paróquia que foi tirado este extracto:


"O pároco dirigiu a palavra ao povo pelo microfone, agradecendo ao Governo da Nação a sua amabilidade para tantos que só agora pela primeira vez viam cinema".


E era assim este modesto povo da Ribeira Quente, que nada recebia mas logo agradecia algo que não alterava a sua situação de miséria. Mas a linguagem do seu pároco não podia ser outra porque era assim a tradição...



Fonte de João Costa Bril.


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