domingo, 27 de outubro de 2019

“HÁ PADRES QUE SE PAGAM MELHOR DO QUE OUTROS”

A Nossa Gente (221)…com o padre Octávio Medeiros

“Há padres que se pagam melhor do que outros”

Onde nasceu e…

Lomba do Botão, na Povoação, onde completei a escola primária. Estive, depois, dois anos no Seminário Menor do Santo Cristo. No seminário de Angra eram dez anos. Antes de chegar aos 10 anos em 7 de Dezembro de 1969 eu e mais cinco colegas saímos do seminário. Era o ano de ordenação e fomos para Fátima para o Seminário Pio XII. Oito anos depois, fomos para a Universidade Católica acabar o curso. Nós estávamos por conta do Bispo de Uíge, D. Francisco de Mata Mourisca. Éramos seminaristas da Diocese de Uíge, no Norte de Angola. Acabei a Universidade Católica em 1961 e fui logo para Angola. Fui ordenado padre em Uíge a 23 de Abril de 1972 e estive lá até finais de 1977. 

Como foi o seu tempo no Seminário?

Foi um tempo espectacular. Alguns lamentam, chamam-lhe até “manhã submersa”. Não é impune que passas 12 anos da tua vida com colegas que não conhecias de parte nenhuma E tu fazes família a ponto da nossa família de sangue, às vezes, ter ciúmes da nossa família de colegas. É interessante que as próprias esposas de nossos antigos colegas (não todas) mas algumas têm ciúmes de nós. É interessante. Tenho notado isso.

Fazia o quê em Uíge?

Fiquei lá sempre na Cúria Diocesana e tinha ao meu cuidado ‘doze povos’, em doze sanzalas (povoação indígena africana na sua maioria constituída por cubatas). Chamava-os ‘os meus povos’.

No final de 1977 vim para São Miguel, para casa dos meus pais na Lomba do Botão. Fui tirar o mestrado na Faculdade de Ciência Sociais, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Vim de lá em 1981 e voltei em 1982, Fiquei no currículo com doutoramento e fui Vice-reitor do Colégio Português. Vim no dia 1 de Outubro de 1983 para a Universidade dos Açores, onde estive até Novembro de 2008.

Deste seu percurso, quais os momentos que considera mais importantes?

A minha ordenação sacerdotal em Angola foi um momento forte da minha vida. 

Outro momento forte, mas pela negativa, foi quando os cubanos (elementos do MPLA) invadiram a nossa Diocese, meteram-nos no nosso carro e levaram-nos de Uíge sem sabermos para onde é que íamos nem o que nos ia acontecer. Fomos, afinal, para Luanda. Mais tarde voltamos a Uíge quando eles quiseram. Foi um momento de muito sofrimento.

Também fiquei contente aquando da minha licenciatura em Ciências Sociais. O meu doutoramento na área de Sociologia também foi um momento marcante.

Quando foi expulso pelo MPLA de Uíge para Luanda, receou pela sua vida?

Estivemos sempre juntos. Dormimos no caminho, debaixo de um camião com mosquitos que era uma coisa séria. O nosso problema era não sabermos o que nos ia acontecer. O que é que nos iam fazer. Meteram-nos num Seminário e quando eles entenderam, fomos de regresso a Uíge. 

Em Uíge, teve os ‘seus povos’…

Eram sanzalas, aldeias como aqui. Era Diocesano, Sou o primeiro padre católico ordenado na Diocese de Carmona (Uíge). Dividia o tempo entre a Cúria Diocesana e as sanzalas. Não parávamos, trabalhávamos todo o dia.

A Diocese dos Açores, entretanto, como foi evoluindo?

Quando vim para cá estive sempre ligado à Diocese de Uíge. O Bispo D. António Sousa Braga fez-me duas nomeações. O meu Bispo D. Francisco de Mata Mourisca não reclamou nem era para reclamar. Mesmo que não quisesse fiquei incardinado na Diocese dos Açores. Mas, desencardinei-me. E como é que eu fiz? Ofereci-me ao serviço militar como voluntário. Como o Estado é laical, o Bispo da Diocese de Carmona, em Uíge, aceitou-me como seminarista.  

Pelas suas palavras, sente um carinho especial pela Diocese de Uíge.

Sim, sem dúvida. A 100%
A Diocese de Uíge é a sua Diocese do coração.

É, podes dizer à vontade que é. É natural. Foi a minha primeira mulher.
Foi lá que fui ordenado e comecei a exercer o sacerdócio.

Qual foi a sua primeira acção como sacerdote em Uíge?

Foi na Cúria. Fui Secretário do Bispo toda a minha vida…

Sentiu-se feliz em Uíge?

Sempre.

Mais feliz do que na Diocese dos Açores?

Também fui muito mais estimado na Diocese de Uíge. 

Quantos livros já escreveu?

Vinte e um e mais 12 em conjunto. 

Lembra-se do seu primeiro livro?

“Igreja de Nossa Senhora de Fátima Subsídios para a sua História” na Lomba de Botão. O segundo livro foi ‘Nascer de Novo’…

Qual a sua opinião sobre o clero açoriano?

Conheço muito pouco. Não tenho muitas ligações. Sou da Ouvidoria da Povoação. Agora, não tenho muito conhecimento sobre o clero dos Açores. Eu não viajo pelas ilhas. Não saio daqui. Já não tenho forças.

Nunca manifestou interesse em cargos na Diocese dos Açores?...

Já fui Vigário Episcopal três anos em São Miguel no tempo de D. António de Sousa Braga…

Como caracteriza estes três anos?

Trabalhei muito. Sacrifiquei-me muito, mesmo muito. Fiz o que pode e não podia. 

E valeu a pena?

Valeu. Eu tenho a consciência tranquila. Fiz mais do que o que podia.

Costuma-se dizer que cada paróquia dos Açores é um bispado. Esta afirmação tem alguma lógica?

(silêncio) Não é assim, mas funciona assim. De facto, cada um tem o seu feudo. É uma igreja muito bonita e tudo bem. Mas, depois, na prática, o que é que se diz? Aquele povo, aquela gente…

Por exemplo, a minha Ouvidoria é a Ouvidoria da Povoação. Gosto mais da minha Ouvidoria do que das outras que não me dizem nada. Vivemos como Igreja, mas não tenho relações com eles. Agora, o meu povo da Ribeira Quente, Furnas, Povoação, Água Retorta estamos a viver com esta gente, é diferente. 

O clero açoriano manifesta demasiados sinais exteriores de riqueza?…

Hei, querido, eu não quero julgar. Não tenho nada. Não quero saber e vivo feliz assim. Cada um vive à sua maneira. Acho que alguns padres deveriam ter sinais exteriores que não fossem tão denunciadores de riqueza. Não sei. Cada um é que sabe de si.

Nasci pobre…

E vai morrer pobre?

Vou morrer com mais dinheiro do que tinha quando nasci.

Porque é que há cada vez menos açorianos nas missas?

Não são só os açorianos. Isto é geral. Esta é uma questão de cultura. Se reparares, a pessoa afasta-se da Igreja precisamente quando chega à idade de investir em si. Vais à Igreja até ao Crisma e desaparecesses. Depois, namoras, casas, têm os filhos e pensa-se em dinheiro, dinheiro, trabalho, trabalho. E a pessoa, sem querer, ‘desabitua-se’ da prática religiosa. Não é que seja uma não prática ostensiva, embora esta também existe. Mas é uma não prática que não corresponde a uma desafeição, a um desencantamento total da religião. Está bem que há de tudo e há situações, há momentos e há circunstâncias e há histórias… muita coisa.

Está a dizer que a maioria dos açorianos que não vai à missa não o faz de forma ostensiva, mas por circunstâncias da vida.

Uma grande parte, sim. Não quer dizer que não haja aqueles que não querem ir mesmo, não ligam. 

E há aquela situação dos açorianos que emigram e quando regressam para a sua paróquia, perderam a embalagem. Encontram uma igreja que evoluiu um bocadinho a nível pedagógico, a nível de catequese, a nível de canto. E a pessoa quando regressa não se encaixa, não se sente bem em casa. É um bocado complicado.

Em algumas paróquias, sobretudo nas zonas urbanas, a igreja evoluiu e…

Basta que o canto fique diferente, uma filosofia diferente. Há coisas que, de facto…

E há situações diferentes de igrejas onde houve esta tal evolução e o novo padre que é lá colocado provoca um retrocesso e as pessoas deixam de se identificar com a sua prática…

Não posso dizer que não. Não sei. Há muita auto-referencialidade. Acho que há uma necessidade de afirmação. E, esta necessidade de afirmação, leva a que, às vezes, se caia no exagero ou de um conservadorismo ou de um progressismo vazio, de um progressismo que não tem nada em que se sustentar. É balofo. Vem uma aragem de vento e leva-o. Ao passo que o conservador  tem fundamento, tem a sua conservação…

Não haverá um conflito entre um conservador que leva a uma adesão menor de crentes às suas missas e um progressista que tem o templo cheio de crentes?...

Isto também acontece. Mas, também, não é nem o conservadorismo nem o progressismo. Às vezes, até, é o próprio sacerdote. Há sacerdotes que têm muito mais facilidade de acolhimento. Há aí sacerdotes que têm muito mais facilidade de dom de palavra do que outros. Há sacerdotes que se pagam melhor do que outros. Há sacerdotes que não têm capacidade de se irem moldando conscientemente aos sinais dos tempos. Tudo isso não é muito fácil. Também exige um bocadinho de reflexão e exige ter assento numa cadeira.

O padre Octávio Medeiros é um padre com um nível cultural elevado. É também um padre que poderia estar na Diocese dos Açores a um nível superior àquele em que está. É por opção pessoal ou foi opção da Diocese?

Não sei. D. António convidou-me para uma coisa (Vigário Episcopal de São Miguel) e eu fui. Já fui Director da Fundação, Director da Escola Profissional da Povoação durante quase 10 anos. Estive em Água Retorta 19 anos como pároco, a zona mais periférica da ilha. Há dezanove anos que estou com esta gente aqui. Gosto desta gente e esta gente gosta de mim.
                      ****
O jornalista fica a olhar o Padre Octávio em silêncio e a sua reacção é surpreendente: “Não te disse que não valia a pena vir de Ponta Delgada aqui (Água Retorta) para me entrevistar”. E o jornalista reage: “Não é verdade. O senhor fala quando quer…”, afirmação que retirou ao padre uma gargalhada. “Eu estou muito cansado. E também já não vale a pena…”, conversa que acabou com um sorriso
                      ****
Considera-se um conservador ou um progressista?

Não sou nem conservador nem progressista. Eu sou um fã de Jesus Cristo. Eu gosto muito dele e ele gosta muito de mim. Temos uma grande cumplicidade. Às vezes eu falho. Ele não falha mas o que é que hei-de fazer. 

Se o actual Bispo o convidasse para um cargo na Diocese, deixava Água Retorta?

Já deixei Água Retorta. Eu sou pároco jubilado de Água Retorta. Quando atinges os 75 anos tens de entregar a paróquia ao Bispo. Fui obrigado pelo Direito Canónico. E até o Bispo entrega a Diocese ao Papa quando atinge os 75 anos. 

Por ser um padre jubilado, este desapego da Igreja deveria levá-lo a chamar algumas coisas pelos seus nomes…

Eu não tenho medo nenhum. Mas há coisas que eu não conheço. Quando escrevo os meus livros, eu conheço o que estou a fazer. E invisto no que faço.

Mas poderia dar uma opinião sobre o clero de São Miguel. Por exemplo, a ilha precisa de mais padres…

Para quê?  Não! Que trabalhem, trabalhem, trabalhem. Já trabalhei bastante. Trabalhei bastante! Que trabalhem, deiam o corpo ao manifesto…

Agora, as colocações de padres não são feitas com cabeça…

As colocações dos padres…

…são feitas para tapar buracos.

Não há uma estratégia nas colocações?

Não devia ser uma estratégia do Bispo, não devia ser uma estratégia do pároco, mas sim uma estratégia do povo de Deus. E quem deve ditar a estratégia é o povo de Deus e não é o Bispo nem o padre.

Se o Bispo é que cria a estratégia de colocação, vai tentar colocar os padres de acordo com a sua estratégia. Se o padre tiver a sua estratégia, que não é a estratégia de Igreja, vai escolher de acordo com a sua estratégia. 

Está tudo ao contrário. 

Voltaria a fazer tudo aquilo que fez até agora?

Menos o pecado, menos pecar. 

Considera-se um pecador…

Antes não fosse. Agora, o que fiz de bem devia ter feito melhor e o que fiz de pecado, tenho pena, com certeza. Fico triste. 

 Fazia tudo o que fiz de bem e ainda aumentava o bem que fiz.

Não tenho consciência de ter feito mal a alguém. Não tenho consciência. Não é que não tenha pecado…

Sente-se um desiludido da Igreja nos Açores?

(silêncio) – Às vezes sinto algum desencanto. Agora estou a escrever para ‘A Crença’ sobre os meus encantamentos e desencantamentos. 

E não é só como padre, como também como pessoa humana, como marida, como cristão, posso ter tido momentos de desencanto. 

O que o desencanta mais?

Às vezes é a incoerência. Às vezes faz-se discursos megalómanos, todos para a ‘frentex’ e, no fim, a montanha vai parir um rato. 

Está desencantado com a forma como a Igreja dos Açores interpreta a mensagem do Papa Francisco?

Como interpreta não sei. Não posso fazer juízos. Agora, que usam e abusam do Papa, isso então não tenho dúvida nenhuma. 

(…)
A igreja tem é que estar de joelhos perante os sinais dos tempos. A Igreja fala muito de Deus. E a Igreja escuta pouco Deus. Não somos nós que vamos converter Deus. Somos nós que nos devemos converter por Deus. Quando tu tentares convertes Deus, estás a perder o teu tempo e o teu sabão. 

Temos é de estar ao serviço de Deus. 

O que vai fazer a seguir?

O que estou a fazer. Estou a ajudar os meus colegas. Tenho mais três obras em espera. Estão na calha. Além dos livros, tenho várias colecções que deixei por onde passei. No Instituto de Cultura Católica tenho lá colecções de estudos e ensaios. Eu é que o criei. Fui Director daquele instituto. Na Povoação, temos os Estudos Povoacenses na Câmara e eu é que ajudei a criar. Aqui, em Água Retorta, eu tenho os Poetas da Nossa Terra que já vai no segundo volume já publicado. O próximo volume será os Agentes da Cultura. Eu quero honrar a filarmónica (Sociedade Musical Nossa Senhora da Penha de França) da qual sou sócio honorário. E o outro livro será os agentes do poder. Eu queria começar desde o tempo dos regedores da freguesia...
                           ***
O tempo estava húmido em Água Retorta. Tinhamos fechado o jornal às 19h45 e o lançamento do livro foi às 20 horas. Mesmo assim, não desistimos e fizemos o percurso de Ponta Delgada a Água Retorta debaixo de chuva e nevoveiro. Por vezes, só viamos a divisória central da estrada. Chegávamos, obviamente, tarde, muito tarde ao lançamento do livro. O padre Octávio Medeiros, de cima dos seus 87 anos, percebeu a nossa grande vontade em o entrevistar. Mostrava sinais de cansaço, mas acedeu ao jornalista. Foi uma conversa em que se falou de muito que é pouco e de um pouco que é muito. Ficamos todos mais ricos!
                                              
(João Paz)


in, Correio dos Açores, 27 de Outubro / 2019 - 

Sem comentários:

Enviar um comentário