sexta-feira, 9 de novembro de 2018

ESTRUTURA ESCAVADA NA ROCHA E CONJUNTO DE MOAGENS DO VALE DA RIBEIRA DOS BISPOS REGISTADOS NA CARTA ARQUEOLÓGICA DOS AÇORES


Carta Arqueológica

Conjunto de moagens do vale da Ribeira dos Bispos

CRS: 309-A
Tipo de Sítio: Agrícola
Localização: São Miguel» Povoação» Lomba do Loução
Zona: Ribeira dos Bispos
Meio: Terrestre
Cronologia: sécs. XVI-XX


A 5 de setembro de 2018, deu entrada, na Direção Regional de Cultura, uma comunicação, intitulada: “Comunicação da existência de uma estrutura escavada na rocha na freguesia de Nossa Senhora dos Remédios, Concelho da Povoação.”, datando de 14 de dezembro de 2017. Essa comunicação dá conta da descoberta de uma construção escavada em pedra, com duas portas de entrada, formando dois compartimentos, ligados entre si por uma passagem escavada. No interior destes compartimentos, refere a existência de nichos quadrangulares colocados junto ao solo. Acresce uma menção à existência de marcas de fecho nas portas. Trata-se de uma comunicação de descoberta de um sítio com “aparente interesse arqueológico” (citação dos proponentes), pretendendo-se a sua inscrição na lista do Património Arqueológico dos Açores.

Foi organizada visita ao local, para realizar uma peritagem técnica e procurar atestar a pretensão dos proponentes.

A freguesia de Nossa Senhora dos Remédios faz parte do concelho da Povoação, na ilha de São Miguel, tendo sido formada em 1957. As suas fronteiras geográficas englobam duas “lombas” e um curso de água de considerável tamanho, conhecido como Ribeira dos Bispos.

É importante referir os motivos históricos que estão por detrás da origem dos nomes destas duas “lombas”, atendendo a que, muito antes de ter sido criada a jurisdição política e geográfica da freguesia, já estes lugares se encontravam habitados. A “Lomba do Alcaide” remonta a sua origem toponímica aos “Alcaides da Povoação”, que ali instalaram residência, durante o século XVII. A “Lomba de João Loução” é referente a um indivíduo com esse nome que ali habitava no século XVI, de acordo com o que nos relata Gaspar Frutuoso, na sua descrição das terras que circundam a “Povoação Velha”, onde refere, a existência de, pelo menos, um moinho de água, acrescentando que as condições hídricas daquele lugar eram de qualidade suficiente para “moer azenhas”.

Remontando, assim, a ocupação do espaço ao século XVI, importa referir, também, que a Povoação corresponde à zona de primeira ocupação humana da ilha de São Miguel, no segundo quartel dessa centúria.

A partir do centro do povoado da atual freguesia de Nossa Senhora dos Remédios, é possível aceder a um caminho agrícola, junto à Ribeira dos Bispos, que faz a ligação a uma zona de vale, entre a “Lomba do Alcaide” e a “Lomba de João Loução”, onde se situa a estrutura escavada na rocha referida pelos proponentes.

A visita ao local decorreu no dia 20 de setembro, tendo observado a existência de uma parte da barreira, a nascente da Ribeira dos Bispos, que apresenta vestígios de escavação por origem humana. Trata-se de uma estrutura com dois compartimentos, conforme a informação apresentada pelos achadores, com duas entradas recortadas na pedra (uma retangular e outra com formato semicircular no topo e retangular junto ao chão), apresentando vestígios de madeira e pregos, que indicam que ali tinham existido dois portões, recentemente. No interior, registaram-se vários nichos, de diferentes formatos, ao longo do chão da estrutura, e alguns ao nível do olhar (a cerca de 1,80 metros de altura), que aparentam estar associados aos antigos portões de madeira, possivelmente como suporte para um mecanismo de tranca. Os compartimentos estão ligados por um nicho, escavado na pedra, de forma aproximadamente circular. Os nichos variam em largura, entre 20 e 50 centímetros, com profundidades máximas de 30 a 40 centímetros.

Através do contacto com os habitantes da zona circundante, a funcionalidade da estrutura foi referenciada como tendo servido para apoio agrícola e zona de arrumo de material de cultivo (enxadas, foices, etc). Alguns dos moradores mais velhos afirmam que sempre se lembram da sua existência, o que indicia que ali se encontra há, pelo menos, um século.

Uma possível explicação para a criação de uma estrutura deste género, prende-se com a existência de habitações e abrigos primitivos, por todo o arquipélago, identificados em trabalhos como o de Francisco Carreiro da Costa, que refere que durante o século XIX, muitas destas “cafuas escavadas nas barreiras e algumas de razoáveis dimensões” ainda eram observáveis frequentemente, em Santa Maria e São Miguel. São várias as referências a este tipo de construções noutras ilhas dos Açores, apresentando funcionalidades variadas: cafuas habitacionais (ilha das Flores), abrigos agrícolas (Faial) ou estruturas de apoio agrário (Terceira).

Carecendo de uma pesquisa documental mais detalhada, e de eventuais futuros trabalhos de registo arqueológico, não é possível avançar com uma datação exata para esta estrutura, na Ribeira dos Bispos. Todavia, a prospeção da área circundante, com o apoio com a Junta de Freguesia de Nossa Senhora dos Remédios, revelou a existência de um conjunto de imóveis que poderão explicar o seu enquadramento na paisagem.

Ao longo do caudal da ribeira, e em zona adjacente à estrutura, identificaram-se cinco antigos moinhos de água, conjuntamente com uma levada e um espaço que serviu em tempos como lavadouro público. Próximo da ligação do antigo caminho agrícola ao povoado de Nossa Senhora dos Remédios, encontra-se um desses moinhos, em razoável estado de conservação, pertença de proprietário privado, que tem vindo a efetuar obras de manutenção, nos últimos anos (pretende instalar ali uma habitação de alojamento local). Seguindo pelo caminho secundário, que faz ligação à estrutura escavada na rocha, e indo em direção à nascente da ribeira, registam-se outros quatro moinhos, em diferentes estados de ruína, e vários troços da antiga levada que fazia funcionar as azenhas, bem como pequenas pontes de pedra, parcialmente destruídas pela passagem do tempo. Acresce a presença de uma antiga debulhadora (localmente apodada de “engenho”), que funcionava, igualmente, com recurso à levada de água e que atualmente se encontra musealizada, por iniciativa da Câmara Municipal da Povoação, e museografia de Rui Sousa Martins (Museu do Trigo da Povoação). 

O vale da Povoação, e, em particular, a zona das “lombas”, sempre foi considerada uma região de enorme fertilidade agrícola. Toda a zona que circunda a Ribeira dos Bispos foi, historicamente, trabalhada em pequenas parcelas, arrendadas a algumas das famílias mais ricas da Povoação, donas dos terrenos. Ali plantavam diversas árvores de fruto, leguminosas e, principalmente, o trigo e, mais tarde, o milho. A indústria cerealífera foi a base da economia do povoado, até meados da segunda metade do século XX, sendo para tal fundamental a presença dos moinhos, para transformação da matéria-prima. A atestar esta importância, destacamos o topónimo “Canada das Covas”, na Lomba de João Loução, que indicia a presença de antigos silos subterrâneo para o armazenamento de cereal, entretanto desaparecidos.

A abundância do produto agrícola, e o caudal volumoso e contínuo da ribeira, levou a que funcionassem cinco azenhas todo o ano. De acordo com a pesquisa de José de Almeida Mello: “(…) os moinhos de Germano Vieira, de António Amaral, de Eduardo Frias, de José Virgínio e o da Canada da Ponte.” Para o funcionamento destas indústrias, a ribeira foi canalizada, criando uma levada principal, com subdivisões para cada uma das azenhas, e outra para a debulhadora, servindo ainda como zona de lavadouro. Todo o complexo encontra-se, presentemente, parcialmente abandonado.

O cultivo intensivo desta área, remontando ao tempo de Gaspar Frutuoso, poderá explicar a presença de estruturas escavadas na rocha, para abrigo agrícola, ou apoio à atividade de cultivo, arrumos ou, possivelmente, associada à exploração pecuária. O que é possível afirmar, após prospeção do terreno, é que todo o vale da Ribeira dos Bispos corresponde a uma paisagem humanizada, com estruturas de aproveitamento hidráulico com interesse patrimonial, associadas ao cultivo dos terrenos férteis, base da vida económica do povoado de Nossa Senhora dos Remédios.

Pedro Parreira

Bibliografia:

CHAGAS, Diogo (2007) – Espelho Cristalino em jardim de várias flores. Centro de Estudos Doutor Gaspar Frutuoso – Universidade dos Açores e Direção Regional da Cultura;

FRUTUOSO, Gaspar (1998) – Saudades da Terra, Livro IV, Instituto Cultural de Ponta Delgada NETO, José Luís e PARREIRA, Pedro - Síntese do relatório das estruturas escavadas no tufo da Caldeira das Lajes, Praia da Vitória, ilha Terceira;

MELLO, José de Almeida (2007) – Retalhos de Memórias. 1957-2007. Junta de Freguesia de Nossa Senhora dos Remédios, Povoação;

DA COSTA, Francisco Carreiro (1989) – Etnologia dos Açores, volume 1. Câmara Municipal da Lagoa, Lagoa, São Miguel.



Povoação, sexta-feira, 9 de novembro de 2018.

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