quarta-feira, 29 de agosto de 2018

TEMPOS DE OUTRORA, TEMPOS DIFÍCEIS… UMA TRAGÉDIA!

Em 1930 o senhor Virgílio Lori, um grande industrial, de Portugal Continental, adquiriu umas pequenas instalações na freguesia de Santa Clara, concelho de Ponta Delgada, depois de as ampliar e modernizar adequadamente, veio dar um grande impulso à vida de muitos pescadores em São Miguel, não só por lhes abrir o caminho para outro tipo de embarcações, como para outro tipo de pesca, a do alto mar, produzindo um tipo de embarcações até então nunca usadas em São Miguel na faina da pesca, barcos motorizados com um raio de acção que permitia a penetração no alto mar aos quais o povo se habituou a chamar de LANCHAS.

Contudo, conseguiu o mesmo não só implementar um novo tipo de pesca como também, pela primeira vez, uma indústria conserveira que usava óleos ou azeites nas suas confecções. É de realçar que, os pescadores da Ribeira Quente, eram pessoas afoitas, “Lobos do Mar”, estes foram incluídos nas tripulações dessas embarcações conhecidas por as Lanchas do LORI, pelo qual o senhor empresário era conhecido. Nessa altura, as ditas lanchas eram preparadas mais para a captura do atum, essencialmente o peixe bonito para a "Fabrica do Lori de Santa Clara", que foi muito positiva porque não só proporcionava outras alternativas a pescadores artesanais de tradição, mas também porque mantinha um relativo número de postos de trabalho a domésticas que nunca haviam sido fabris.

 Há que notar que embora a Sociedade Corretora já existisse antes do Lori, esta sociedade nascida por força do ananás, ainda não existia como indústria de pesca transformadora, visto que durante os anos de 1940/41, se mantinha a fabricar rodelas de ananás e sumos nas suas instalações da Rua do Conde, em Ponta Delgada e, depois, entre 1942/43, fabricava doce de batata doce para a Cruz Vermelha Internacional, nestas mesmas instalações.

Só no ano de 1944 a Sociedade Corretora adquiriu à Dias & Dias as suas instalações em Vila Franca do Campo, a fim de incrementar a indústria de pesca em maior dimensão, alterando-a e dando-lhe a modernidade que não tinha.

Adquirindo em 1946 a fabriqueta de peixe de sal moura a Laurénio Tavares, da Rua da Vila Nova, com este alvará a Corretora construiu em 1946 a sua melhor unidade industrial de conservas de peixe em Rosto de Cão (São Roque) e, mais tarde, em 1963, adquiriu ao industrial desse ramo, de nome Lopes, a fábrica de conservas da Calheta e a de Santa Maria.

Estimulados pelas boas perspectivas lançadas ao tempo pelo industrial Lori, e aproveitando não só a experiência alcançada por alguns velhos sábios pescadores do porto da Ribeira Quente, que estiveram ou estavam ao serviço de algumas embarcações de pesca do bonito e atum, do referido industrial dos lados de Santa Clara ou Nordela, mas também a certeza de que arranjariam facilmente tripulações na Ribeira Quente, o que dois comerciantes desta localidade investiram nesse tipo de embarcações motorizadas, porque o futuro parecia ser promissor, sendo António Inácio Flor de Lima, homem empreendedor, juntando-se a Manuel Pacheco de Medeiros Júnior, da Vila da Povoação, mandou fazer uma embarcação idêntica às do Lori, mesmo na Ribeira Quente, visto que já ali existiam dois valiosos carpinteiros-calafates, o Sousa e o Horácio, ambos com vastos conhecimentos de construção de barcos de pesca artesanal.

O outro comerciante foi Luiz Linhares de Deus. Este, de parceria com o muito experiente lobo do mar da localidade, José Narciso, também se lançaram na mesma senda. Este tipo de embarcações veio, de certo modo, revolucionar os velhos costumes dos pescadores da Ribeira Quente, porque lhes abria a porta para a pesca em mar largo.

É de realçar que no ano de 1946, depois de já há muito exercerem este tipo de pesca industrial, mais chamada de pesca de alto mar, estando estas duas embarcações nas imediações da Ilha de Santa Maria, foram as mesmas apanhadas por uma tremenda tempestade e além disso não existiam meios de comunicação a bordo porque a navegação ainda dependia mais do conhecimento dos mestres das embarcações do que da informação, que começou na noite de 4 para 5 de Outubro do referido ano de 1946.

Por exemplo a "Lancha do Narciso" (sempre assim denominada), com este velho timoneiro ao leme, tentou fazer-se ao largo, mas foi impedida pela força do vento e vagas, o que foi arrastada acabando-se por despedaçar-se perto do "Calhau da Roupa", situado entre a Ponta do Marvão e o porto daquela ilha e por volta das dez horas da manhã do dia 5, a outra embarcação, depois de uma noite de de ocorrências entrou espectacularmente na doca de Ponta Delgada. Um dia que ficou marcado para sempre na memória daquelas gentes e que actualmente os nossos mais idosos da Ribeira Quente, ainda lembram-se muito bem dessa grande tragédia, porque morreram dezassete pescadores no porto de Vila do Porto, entre os quais Júlio Bento do Couto, de 44 anos de idade, casado na Ribeira Quente e sepultado num dos cemitérios daquela Ilha.

Em São Miguel, essencialmente no porto de Ponta Delgada, devido a esta tempestade, morreu esmagado entre a muralha e o barco do Anhanha, outro filho da Ribeira Quente, João Rita.

Outra ocorrência trágica que algum idoso recorda-se ainda nessa noite de tempestade a escola mista conhecida como "Escola do Saraiva" foi levada pelo mar, assim como quase toda a muralha de protecção à mesma, que também protegia o acesso à Ponta do Garajau e dali adiante.

Nessa altura a Ribeira Quente tinha uma população de 2070 pessoas distribuídas por 460 fogos que eram insuficientes, porque alguns dos edifícios não eram habitáveis.

Da visita feita no ano anterior pelo sub-secretário das Obras Públicas nada transpareceu além das tradicionais promessas. Porém, em Fevereiro desse ano trágico, o povo desta localidade recebeu a visita de uma viatura que andava pelos povoados dos Açores, a mostrar, através de uma câmara cinematográfica, a "Viagem Presidencial de Carmona aos Açores em 1941" e, simultaneamente, o filme trágico dos pescadores de Varzim, o "Ala-Arriba" de forte comoção!

E assim se respondia a prementes necessidades deste povo sempre a sofrer um rigoroso destino. Foi do Livro de Assentos da paróquia que foi tirado este extracto: "O pároco dirigiu a palavra ao povo pelo microfone, agradecendo ao Governo da Nação a sua amabilidade para tantos que só agora pela primeira vez viam cinema".

E era assim este modesto povo da Ribeira Quente, que nada recebia mas logo agradecia algo que não alterava a sua situação de miséria. 

Mas a linguagem do seu pároco não podia ser outra porque era assim a tradição...

João Costa Bril.

Povoação, quarta-feira, 29 de agosto de 2018.

1 comentário:

  1. Seria ótimo que introduzisse uma fotografia dessas lanchas motorizadas construídas na Ribeira Quente para o sr Narciso ou para o sr Flor de Lima. Marcaram uma época; as imagens que acompanham o artigo são de barcos modernos que nada têm a ver com os primeiros atuneiros que para cá vieram com o Lóri, que conheci bem( casco pintado de verde) e com os da Cofaco( casco vermelho) de propriedade de algarvios e know-how dos italianos Parodi.

    ResponderEliminar