segunda-feira, 3 de novembro de 2014

“O CANCRO DOS AÇORIANOS”

Carta Aberta aos membros do XI Governo Regional dos Açores e aos Ex. mos deputados e deputadas da Assembleia Legislativa Regional dos Açores

Ex. mos membros do XI Governo Regional dos Açores e ex. mos deputados da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores:

Em primeiro lugar, lamento profundamente que a minha condição física não me permita dirigir-me a cada um de vós para que pudessem enfrentar “olhos nos olhos” a indignação pela falta de determinação que revelam ao descurar matérias verdadeiramente importantes para os açorianos e açorianas: a mísera comparticipação a doentes e acompanhantes deslocados; os direitos de assistência à família em doença prolongada e o ainda não existente centro de radioterapia nos Açores.

Tal como centenas de açorianos e açorianas eu tenho cancro, um carcinoma basal da mama. Após a cirurgia, que será realizada no próximo dia 27 de outubro, poderei ser mais uma a constar da lista de pessoas encaminhadas para o continente português, devido à inexistência de um centro de radioterapia nos Açores, para um tratamento difícil e cujas consequências debilitadoras a nível físico e psicológico são conhecidas e reconhecidas por todos vós.

Recordo-vos que a 15 de novembro de 2010, data em que foi assinado o contrato para a conceção, construção e exploração do Centro de Radioterapia dos Açores, Carlos César, na altura Presidente do Governo Regional dos Açores, afirmou que o futuro Centro de Radioterapia dos Açores seria um “empreendimento, que marcará, sem dúvida, uma evolução enorme na capacidade instalada nos Açores de oferta de cuidados de saúde.” Relembro-vos que a 11 de Abril de 2013 o secretário regional da Saúde dos Açores, Luís Cabral, reafirmou a construção do centro de radioterapia na nossa região dizendo que “tudo está definido para que o projeto possa arrancar dentro de um curto prazo de tempo”. Não obstante, todos os impasses e demoras levaram a que só em janeiro de 2014 foi anunciada a construção do Centro de Radioterapia dos Açores e esperemos que o mesmo, tal como afirmado, esteja finalmente concluído em 2015.

Ao contrário de vossas excelências, a maioria dos açorianos e açorianas não está versada na arte do viajar cá e lá e não possui o vosso arcabouço cosmopolita.

A maioria dos açorianos e açorianas, por terem estado acorrentados pelo elevado custo das passagens aéreas, vê o continente português como algo desconhecido e como uma realidade tremendamente diferente da nossa.

Caminhar nesta luta contra o cancro tendo de estar num ambiente tão diferente do nosso é mais um dos obstáculos para nós. E tal não se deve apenas a ter de enfrentar a azáfama das grandes cidades, nem a sentirmo-nos sós num mundo que não é o nosso. Existem também outros motivos sobre os quais provavelmente muitos de vós ainda não tiveram tempo nem consciência para refletirem.

Hoje consigo percecionar que o “cancro dos açorianos” é um subtipo que enfrenta maiores obstáculos.

Pela voz de uma simples cidadã que neste momento luta pela vida e enfrenta a dura batalha contra o cancro espero que vossas excelências entendam a gravidade de terem delongado as vossas promessas e iludido quem vive e trabalha nesta terra.

Assim, passarei a relatar-vos um exemplo concreto, o da minha própria situação, e espero que escutando o meu pensar e o meu sentir entendam o desalento de quem espera e desespera por um centro de radioterapia nos Açores, por um apoio digno aos doentes que ainda têm de ser deslocados e por uma adaptação legislativa que permita aos que padecem terem o acompanhamento familiar que tanto necessitam.

Ter de iniciar um tratamento tão complexo numa cidade que praticamente desconheço fragiliza-me ainda mais. Poderei partir para semanas duras e terei de me afastar do meu povo, da minha gente, da paz destas ilhas, do cheiro deste nosso mar e de todas aquelas características que fazem desta nossa terra um verdadeiro paraíso. É muito mais amargo ter de enfrentar o cancro partindo para longe deste paraíso que me enche a alma e embala o espírito.

Mais grave ainda, meus senhores e minhas senhoras, é a comparticipação diária que vossas excelências estabeleceram para doentes oncológicos descolados para o continente português.

A comparticipação diária atribuída a cada paciente açoriano deslocado no continente, para financiar o seu alojamento e alimentação, apresentando o devido recibo de alojamento corresponde à mísera quantia de 25 euros e 46 cêntimos. Um ultraje!

Pagando alojamento digam-me vossas excelências quanto dinheiro deve sobrar para que um doente deslocado se alimente?

Por vossa responsabilidade um utente com uma doença cancerígena tem de sobreviver num meio estranho, pagando uma diária de alojamento, com 25,46 €. Ou seja, o utente com cancro é por vós encaminhado para uma abstinência alimentar forçada.

Não espero que vossas excelências possam entender o quão aflitiva é esta situação porque se tivessem de passar pela mesma enfermidade o vosso rendimento mensal permitir-vos-ia a sorte de não terem de pensar neste pormenor: O que é que come um doente oncológico quando deslocado para uma terra diferente? Sobrará dinheiro para uma refeição?

É triste… mas vossas excelências dão-nos uma miserável esmola que nem chega para uma alimentação mínima. Para além de doentes oncológicos desejam ver-nos anémicos? Ou é vosso intento que a fome nos definhe para deixarmos de ser mais um encargo no orçamento que gerem?

Ex.mos senhores e senhoras o “cancro dos açorianos”, sobretudo o dos pobres e remediados, encontra nas vossas falhas sérios obstáculos que fazem esta batalha parecer um pesadelo.

Sabem vossas excelências que um tratamento de radioterapia demora em média seis semanas?

Sabem vossas excelências que o acompanhante do paciente apenas tem direito a um reembolso de 65% do vencimento nos primeiros quinze dias?

Sabem vossas excelências que a omissão legislativa relativa a este acompanhamento leva os pacientes com cancro ao desamparo financeiro?

Falando-vos na primeira pessoa digo-vos que, quando me está a ser colocada a hipótese de seis semanas de radioterapia, as minhas forças e a minha coragem são literalmente “atropeladas” por saber que quem me poderá acompanhar perderá o seu vencimento. Vencimento este tão necessário para manter o equilíbrio do meu lar.

Mais grave ainda, a omissão legislativa no acompanhamento a pacientes com doença prolongada que faz com que as entidades patronais possam declinar pedidos de licença sem vencimento para este acompanhamento e, por tal, pode causar numa família martirizada pelo cancro um outro mal pesaroso: o flagelo do desemprego.

Infelizmente, perdi o meu pai, o meu tio e padrinho e o meu irmão e a minha mãe é uma idosa acamada. Assim, o único familiar que me poderá acompanhar será o pai da minha filha. A Maria tem quatro anos e um grave défice de IGA, que lhe traz diversas patologias associadas e que faz com que ela tenha um plano terapêutico diário muito dispendioso. Sendo assim, como poderei eu dar-me ao luxo de ir acompanhada numa deslocação ao continente para tratamento de radioterapia sabendo que a falta de um vencimento colocará em risco a assistência na saúde da minha própria filha?

Assim, meus senhores e minhas senhoras, deixo-vos o testemunho da angústia de alguém que, vivendo o “cancro dos açorianos”, sente o medo de ter de enfrentar seis semanas de uma guerra dolorosa numa realidade distante, só, afastada das amizades que a apoiam e longe daqueles que ama.

Sinto-me traída pelas vossas promessas, atrasos e omissões!

Sei que já não poderei usufruir de um centro de radioterapia nos Açores, nem de uma mudança legislativa que me permitisse acompanhamento em caso de deslocação e muito menos de conseguir uma comparticipação diária condigna, mas espero sinceramente que as minhas palavras vos toquem a consciência para que, num futuro breve, não façam mais açorianos e açorianas passarem por este tormento.

Que a minha voz desperte a vossa consciência cívica e que abracem esta causa porque nós precisamos e merecemos não ter de passar pela amargura do “cancro açoriano”.

Fonte: Correio dos Açores / autor: Paula Margarida Tavares

29 de Outubro de 2014.

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